Não há negar que a União Europeia atravessa seriíssima crise. A bancarrota grega exacerbara o problema, com dívida desproporcional à potencialidade da economia helênica,dada a falta de supervisão mais responsável pelas autoridades de Bruxelas, e, por fim, os próprios questionáveis critérios que presidiram a seu ingresso na zona do euro. Neste particular, assinale-se a discutível ajuda externa de agência classificadora de risco, em comportamento tristemente similar à irresponsável posterior atribuição do tríplice A aos CDOs das hipotecas subprime inventadas pela ganância especulativa de Wall Street, e que estão na raiz da crise financeira internacional deflagrada com a falência do Banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008.
No entanto, forçoso será reconhecer que a crise da pequena economia helênica terá sido a palha que quebrou a espinha do camelo da U.E. As crassas omissões na obra dos próceres da segunda fase da construção europeia – a primeira sendo a dos fundadores da comunidade europeia de seis membros (Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) – viriam a ser sentidas com redobrada urgência já na segunda década do século XXI.
Mais pesariam tais erros com o crescimento – ou a inchação – do número de países integrantes da União Europeia (27 na atualidade) e da Zona do Euro (17). Na euforia da construção europeia, seus principais arquitetos se conformaram a uma visão prometeica, fundada na ousadia de empresa por tantos séculos ambicionada. Em função dessa perspectiva, foram ignoradas as cautelas epimeteicas. Em outras palavras, esqueceram os preparativos para eventuais borrascas, a visão voltada sempre para os mares da bonança.
Dentro da regra da unanimidade – como já aqui recordado, esta cláusula polonesa foi uma das causas das partilhas do antigo Reino da Polônia, e de seu longo desaparecimento como entidade independente no concerto europeu – em conglomerados como o da UE se torna por extremo difícil a tomada de decisões, eis que podem ser inviabilizadas por um único voto contrário (como, v.g., no recente episódio da Eslováquia).
Além disso, a própria situação helênica na zona do euro expõe outra gritante lacuna: pelo olvido dos próceres, os membros se acreditam eternos, eis que inexistem regras para a exclusão de integrantes, que manifestamente não se achem em condições de aí permanecerem.
Igualmente, no que tange ao Banco Central Europeu, não lhe foi dado o poder de todo banco central em unidade nacional. A falta de equilibrio nas normas existentes inibe a atuação das instâncias de controle, despojadas de instrumentos válidos para garantir o equilíbrio fiscal e desestimular práticas como as verificadas não só na Grécia, senão na Irlanda, em Portugal, e, para falar dos mais grandinhos, na Itália e na Espanha.
Agora, a Chanceler Angela Merkel, assistida por seu hábil e fiel escudeiro, o Ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, vem a público asseverar que é hora de consertar ‘os erros da construção’ na zona do euro.
Perante o Bundestag (parlamento federal) a Chanceler enfatizou a necessidade de ação rápida para emendar os tratados europeus que estão na raiz da atual crise da dívida soberana. Frau Merkel discursava para os legisladores alemães, mas tinha as vistas postas nas próximas reuniões em Bruxelas, a fim de que encontrasse uma solução para este desafio. Assinale-se que o presidente Nicolas Sarkozy, em discurso anterior, se pronunciara de forma análoga, no que concerne a alterações nos tratados vigentes da União Europeia, ou pelo menos sobre novas regras para a zona do Euro e seus dezessete membros.
Malgrado a urgência de tais modificações, o diretório de Merkel e Sarkozy – que terão polido as respectivas arestas – não ignora as grandes dificuldades da empresa, dado o número de partícipes, a vigente regra da unanimidade, e a pletora de recursos que uma tal situação enseja aos países favorecidos pela atual anomia.
Em tal contexto, semelha relevante atentar para a posição do Reino Unido. O Primeiro Ministro David Cameron entrevistou-se em Paris com o Presidente Sarkozy, que procurou tranquilizá-lo quanto aos planos franco-alemães de promoção de um novo Tratado da União Europeia, que implemente maior disciplina orçamentária.
Espicaçado pelo mercado financeiro de Londres, Cameron tem dupla e quase antinômica preocupação: o Reino Unido teme ser marginalizado por um acordo da eurozona, mas também receia as consequências de eventual desfazimento da zona do euro.
Repontam neste episódio antigos confrontos, como se de um lado Angela Merkel & Nicolas Sarkozy, e de outro David Cameron fossem doppelgänger ( entes dúplices) de passados protagonistas da cena europeia. O general de Gaulle, na sua famosa conferência de imprensa[1] de novembro de 1967 em que na prática vetara o pedido de ingresso da Inglaterra de Edward Heath na então CEE aludiu ,como razão determinante para o fechamento da porta , insularidade britânica que a tornava no seu entender incompatível com a continentalidade europeia.
Essa ambiguidade britânica que os franceses chamam de ‘pérfida Albion’, pelo visto, não saíu totalmente de cena. Os ingleses pautaram em dissociar-se da moeda comum europeia, preferindo conservar a velha libra esterlina, com a efígie da rainha Elizabeth II. Dadas as peripécias presentes, não terão decerto motivo para queixar-se da escolha, que é decorrência das reservas do eleitorado conservador para com os assuntos do ‘continente’.
Sem embargo, como já sublinhado nesse blog, a situação não é fácil para os ocupantes do número dez de Downing Street cujo caráter contraditório se vê refletido nos cuidados de David Cameron tanto com um acordo que fortaleça a zona do euro, quanto com sua dissolução.
Sem querê-lo, Cameron parece ressuscitar os duendes levantados pelo general de Gaulle. A Inglaterra deseja preservar a própria singularidade em um universo no qual outros membros importantes da U.E. – como RFA e França – reiteram a opção por moeda comum, que simboliza ulterior e mais relevante escolha, a europeísta. Procurando compor com forças centrípetas e centrífugas, o esforço do Primeiro Ministro David Cameron não é nada invejável, e poderia ser definido, por suas antinomias, como missão impossível a médio e longo prazo.
(Fonte subsidiária: International Herald Tribune )
[1] As conferências de imprensa do general de Gaulle, pronunciadas perante todo o gabinete e os jornalistas acreditados, na verdade eram longos discursos por ele memorizados, em que o Presidente francês tratava dos assuntos que lhe pareciam importantes. Para dar uma pátina de veracidade à suposta entrevista, jornalistas próximos do Elysée faziam de início uma série de perguntas, de que a subsequente alocução de de Gaulle passaria por resposta.
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