Assuntos contenciosos tendem a ficar mais claros e inteligíveis com o passar do tempo. A querela acerca do Conselho Nacional de Justiça é mais uma prova de quão apropriada pode ser a visão retrospectiva, se informada pela boa fé e o correto entendimento das motivações respectivas.
Qual será a tática de quem deseja alcançar objetivos particularistas, dificilmente defensáveis se abertamente declarados, senão desviar a discussão para aspectos laterais, que servem para toldar as águas, e introduzir elementos passionais, que pouco têm a ver com o mérito da questão ?À primeira vista, sua superficialidade pareceria prejudicar tal orientação. Sem embargo, um exame da evolução da controvérsia acerca da pretensa invasão pelo CNJ das prerrogativas das corregedorias dos tribunais estaduais mostrará que, para aqueles que almejam fazer progredir os próprios interesses e confundir o campo adversário, essa tática não é de desdenhar-se.
Tudo começou em uma fábula de boas intenções. Ter razão em uma determinada questão é premissa importante para quem deseja prevalecer em seus propósitos. No entanto, não se deve nunca enjeitar a prudência como companheira nesta empresa. Tal pressupõe o respeito do adversário, a indispensável cautela no avanço, jamais expondo as próprias linhas a contra-ataques do antagonista.
Não se questiona o acerto da causa da Corregedora Eliana Calmon. Segundo declara o Ministro do STJ, Gilson Dipp – e antecessor imediato de Calmon na corregedoria – ela “é agressiva e gosta de polêmica”. Por outro lado, há divisão na atual gestão do CNJ. Seu presidente, Cezar Peluso – que acumula o cargo com a presidência do STF – “é conservador, vem de São Paulo. E com isso muitas atitudes da Corregedoria não agradavam ao presidente, e vice-versa. Faltou diálogo. E os conselheiros também se dividiram”.
O ministro Dipp aqui alude a certos conselheiros que teriam sido eleitos não para defender a instituição, mas para avançar certos posicionamentos corporativos dos órgãos que os indicaram.
Perguntado se procede a avaliação da corregedora de que se pretenda fazer um linchamento público e moral dela para enfraquecer as atribuições do CNJ, Dipp assim se manifesta: “Acho que ela é a bola da vez. Ela se expôs muito. Essa reação contra ela acabou fazendo dela uma heroína nacional. E de heroína não tem nada. Ela simplesmente está cumprindo o mínimo que é de sua competência, mas é mulher.”
Pode-se questionar, neste ou naquele ponto, a isenção do antecessor. Mas não há negar que muitas de suas observações procedem.
Talvez o Ministro Dipp devesse ser mais vocal no seu apoio à atuação da sucessora. Afinal, o pomo da discórdia, vale dizer o pedido ao Coaf[1] de registro de movimentações de valores atípicas envolvendo magistrados, partira em julho de 2009 do corregedor Gilson Dipp. Os relatórios, contudo, só chegaram à autoridade em fevereiro de 2011, quando Eliana Calmon já estava no cargo.
Por outro lado, à parte as diferenças de gênio, o presidente Peluso é autor de proposta de emenda constitucional (PEC) que, entre outras coisas, intenta cercear os poderes de fiscalização do Conselho.
Como se verifica, Peluso, ao invés de vestir a camisa do CNJ, como o fez o Ministro Gilmar Mendes, desejou atender a postulações do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tratam-se, portanto, de diferenças frontais, que nada têm a ver com problemas de temperamento.
E, vejam só, as principais reações contra os atos da corregedora vem desse Tribunal, que no parecer de Gilson Dipp “sempre foi um tribunal com menos poder de gestão, com menos planejamento, até pelo seu gigantismo. Os juízes tinham um passivo grande a ser recebido. Todos eles. (...) Quando se anunciou a inspeção, houve essa reação por motivos óbvios. O presidente do CNJ é de São Paulo (Cesar Peluso), o presidente da AMB (Nelson Calandra, da Associação dos Magistrados Brasileiros) é do TJ de São Paulo.”
A par disso, não se poderia esperar que o Ministro Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, fosse mais incisivo sobre o mérito das liminares – a concedida pelo Ministro Marco Aurélio Mello à Ação Direta de Inconstitucionalidade, da AMB, que restringiu o poder de fiscalização do CNJ, e a do Ministro Ricardo Lewandowski, que suspendeu investigações que estavam em andamento. Questionou-lhes a oportunidade, o que já é muito, dado o caráter adjetivo e suspensivo próprio da liminar.
O viés sensacionalista empregado pela Folha de S. Paulo (CNJ rastreia 216 mil e abre guerra no Poder Judiciário) não corresponde, decerto, ao desígnio da Corregedoria, como se verifica pela exposição acima. Por outro lado, para alguns a decisão do Ministro Ricardo Lewandowski é discutível, por determinar a suspensão da devassa recém-iniciada pelo Conselho, em questão de que seria um dos interessados (o Ministro Lewandowski nega qualquer conflito de interesse).
Na zoada e nos clamores despertados pela celeuma, a intervenção do ex-presidente do STF, Nelson Jobim – que foi instrumental para a aprovação da emenda constitucional do Conselho Nacional de Justiça – semelha não só relevante, como oportuna para recolocar a questão em um plano mais alto, em que o interesse da Justiça e da federação seja atendido, e que não se fique a reboque de posturas corporativistas.
Segundo revela a Folha de 26 de dezembro corrente, Nelson Jobim classifica como um retrocesso a tese que esvazia os poderes de investigação do CNJ. Em artigo a ser publicado na próxima edição da revista “Interesse Nacional” Jobim assevera que em nenhum Poder a necessidade de controle “é tão pronunciada quanto no Judiciário”.
Sem citá-la diretamente, Jobim debate a decisão do Ministro Marco Aurélio Mello, que avaliou que o CNJ não pode tomar a iniciativa de investigar juízes antes das corregedorias locais.
A tal propósito, Walter Jobim afirma que a tese da subsidiariedade – pela qual o órgão deve-se limitar a julgar recursos de investigações sobre juízes iniciadas em tribunais – é regressista e leva o Judiciário ao isolamento.
Se prevalecer tal tese, “o CNJ passará a ser órgão dependente de ações prévias – de duvidosa ocorrência e transparência – dos tribunais”. Em outras palavras, se manietaria o CNJ que, forçado a esperar pela vinda de Godot, nada poderia fazer enquanto o tribunal estadual não atuar.
Jobim põe o dedo na ferida das argumentações especiosas da AMB e congêneres, ao referir: “As elites dos Estados federados debatem-se para impedir que seus pretendidos espaços sejam objeto de exame para órgão com visibilidade nacional.”
Com a devida vênia do Ministro Gilson Dipp, a importância da causa explica porque a Ministra Eliana Calmon é apoiada pela opinião pública. As atoardas se dissipam e a sua defesa da competência do CNJ – que é o da necessidade inelutável do controle externo da Justiça – deve continuar a ser apoiada através das pressões em favor de interesse nacional.
Não aos feudos do corporativismo, e às suas tentativas regressistas. Relevemos as eventuais inabilidades da paladina do CNJ, a ministra Eliana Calmon. Muito mais alto se alevanta o interesse nacional, e a necessidade de que as citadas liminares, concedidas dentro de um período nebuloso, sejam derrubadas.
O corporativismo pode ter muitos aliados, mas se exposto à luz da verdade e do interesse geral, essa planta costuma definhar rapidamente.
A corregedora do CNJ defende o interesse do Conselho e da federação. Gritarias corporativistas à parte, ela precisa ser apoiada. Pelo seu destemor. E por estar servindo à boa causa.
(Fontes: Folha de S. Paulo, Zero Hora )
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