Reunem-se em Bruxelas chefes de governo para decidir sobre reformas fiscais para suprir as lacunas deixadas pelos tratados de fundação da União Europeia e da Zona do Euro.
Como são 27 os membros paritários da U.E., e 17 os integrantes do até há pouco dito privilegiado clube do euro, todos munidos da cláusula ‘polonesa’ da unanimidade, as perspectivas dessa reunião em alto nível não prometem serem tão consensuais e serenas quanto muitos desejariam.
Desde muito que o trabalho de reconstrução da Alemanha, mesmo mutilada por duas guerras perdidas – a primeira em que a responsabilidade do Kaiser Guilherme II não se afigura assim tão abrangente quanto o carimbou o Tratado (para os alemães Diktat) de Versailles, a par da insolúvel ambiguida do Secretário do Exterior britânico Edward Grey – foi concluído por obra de Konrad Adenauer e Ludwig Erhard. Essa redescoberta vocação, confirmada pela opção europeizante de Willy Brandt e Helmut Kohl, seria culminada pelo difícil abandono do marco alemão no altar do caminho da unidade europeia.
No plano político, a insânia nazista e o Reich do mal de Adolf Hitler foi o trauma que exigiu duas gerações de estadistas para se tornar página virada. No econômico, resultante das pesadas reparações impostas pelas potências aliadas, a hiperinflação de 1922/23 é a face de outro trauma, o financeiro que, refugiado nos recessos da psiquê, se mostra de mais difícil erradicação. Decorrência do desastre da guerra que se pensara resolver com a queda das folhas no outono, e que se prolongara nas carnificinas dos campos franceses, e na miséria humana das trincheiras, iria perdurar na mente germânica, a despeito da cura administrada pelo Dr. Hjalmar Schacht, a partir de novembro de 1923. Por isso, a troca do sólido Deutsche Mark, conquista de longo empenho no árduo pós-guerra com a Alemanha partida, pelo novel euro, representou quiçá a maior prova da abraçada vocação europeia do governo e do povo alemão.
Por sua situação e relevância, a Alemanha é a locomotiva da Europa, sob a Chanceler Angela Merkel, vinda simbolicamente das províncias reunificadas da antiga vilipendiada Ostzone[1]. Aparentemente, Frau Merkel forma uma diarquia com o Presidente Nicolas Sarkozy, da França, mas não será segredo que este é coadjutor daquela.
Merkel e Sarkozy acordaram os traços principais da indispensável reforma que pretende tornar coisa séria a zona do euro, e não trampolim para mergulhos sempre mais estouvados no mar abismal da dívida irresponsável, como a paciente zero nesta triste progressão epidêmica, a velha Hellás o demonstrou sobejamente.
Os remendos, é verdade, sofrem do vício redibitório de tentarem corrigir menos tecidos esgarçados do que fazendas mal escolhidas, que não logram recobrir tudo o que deveriam. É de esperar-se que os gerarcas europeus - mesmo aqueles que, como Finlândia e Países Baixos, fizeram sempre o dever de casa – cuidem de aumentar as provisões e os instrumentos, para garantir a resistência da cabana europeia, e assim preservá-la dos sopros homicidas do lobo dos déficits desproporcionais.
De qualquer forma, por não partirem do zero, devem fazer prova de comedimento e espírito comunitário. Os membros desse conclave – assim como muitos cardeais-eleitores – não são santos. Até a fortaleza alemã tem bancos com ativos algo dúbios, provenientes de empréstimos gregos. Já a França de Sarkozy – que enfrentará no ano próximo uma difícil tentativa de reeleição, contra o candidato socialista François Hollande que se não exagera em carisma, promete muitas benesses ao eleitorado – tem uma dívida substancial, mas por enquanto retém o triplo A das agências classificadoras. Se é relativa tal distinção – mormente após a escandalosa atribuição dessa classificação máxima aos notórios CDOs, com hipotecas subprime podres (que estão na raiz da falência do Lehman Brothers e da Crise Financeira Mundial) – pelo menos a coloca na companhia de Áustria, Finlândia e Países Baixos.
Da conferência de cúpula europeia emanarão as diretivas para um eventual tratado ou protocolo adicional, que terá por escopo evitar os déficits ruinosos não só de pequenas economias como a irlandesa e a portuguesa, senão das grandes como Itália e Espanha. Há,no entanto, vários escolhos – quiçá o principal a regra panglossiana da unanimidade –e a tarefa não se anúncia com plácidos mares e horizontes sem nuvens.
Dentre os partícipes da conferência – que reúne os singulares e contraditórios atributos de participar em união de que os respectivos nacionais alimentam fundas dúvidas – David Cameron, o primeiro Ministro de Sua Majestade Britânica, não mais representa a força da antiga e temida Álbion, porém ainda conserva poderes suficientes para dificultar a formação dos consensos.
O Reino Unido não participa da Zona do Euro, eis que na sua integração europeia não a julgaram bastante para desvencilhar-se da libra esterlina. Nos tempos que correm, é uma vantagem, dadas as sombras que envolvem o euro. Sem embargo, essa deficiência europeia – que já motivara célebres vetos de sua antiga nêmesis, o general Charles de Gaulle – será faca de dois gumes. Se lhe dá ingresso no clube dos 27, e nas tentativas de não reforçá-lo em demasia (o que poderia prejudicar o centro financeiro de Londres, que já não resplende com o brilho antigo), terá seus limites, eis que a própria Inglaterra se excluíu das questões pertinentes à zona do euro. Carrega, assim, no próprio hibridismo os limites que cerceiam a sua declarada vontade de defender os interesses de Londres. Pois, quer queira Cameron ou não, o objetivo da conferência é o de cooperar no beneditino trabalho da construção europeia.
( Fonte subsidiária: International Herald Tribune )
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