quarta-feira, 13 de julho de 2011

Surrealismo

           Terá o saudosismo alguma base na realidade, ou a nostálgica reação seria apenas uma questão de memória, com a distância no tempo, romantizando os quadros antigos, expurgados de agruras e verrugas pelos suaves, insensíveis sopros de um parcial esquecimento ?
           Como em tantas outras coisas, encontraremos dúplices respostas para essa pergunta, que tocará mais de perto os que já tenham atravessado um caminho mais longo.
           Assim, personagem de René Clair, interpretado por Michel Simon, seria a recorrente voz do saudosismo. Na cavalgada do filme, em que o carrossel semelhava girar ao revés, aparecia a figura, reclamando dos tempos atuais, e louvando um passado desconhecido para os outros personagens.
           Na desabalada carreira passado adentro, ressurgia o mesmo ator,sempre com roupas de outra época, e a entoar loas para tempos ainda mais distantes, tudo sob a alegra descrença dos companheiros de mesa.
           Pode-se discutir a intenção do cineasta francês. Desejaria ele, pela ritual irrupção da cômica carantonha de Michel Simon, apenas satirizar os passadistas ? Ou se proporia relativizar as impressões humanas, em que a experiência seria máquina imperfeita, a produzir julgamentos datados e preconceituosos ?
           Por sua vez, Woody Allen, no seu atual filme Meia Noite em Paris, parece recomendar um culto mais simplista, sem ironias gaulesas, de uma era que se procura eternizar nos largos traços de um quadro imutável, não mais sujeito aos caprichos da deusa fortuna. Daí os atrativos do conto de fadas, com personagens humanos, cuja prática não nos reserva surpresas, mas tão só a ilusão de uma trajetória fora das angústias do presente.
           Diante do que se nos depara, a realidade brasileira desafia um definição apressada. Estaremos vivendo os famosos ‘tempos interessantes’, de que nos falam os chineses, e que de interessantes têm muito pouco, a não ser o travo amargo de um desagradável dia-a-dia ? Ou tudo será a mesma estória de sempre, que a eterna querela da memória com o rio do Lete torna por vezes irreconhecível ?
          O cenário de abandono das cidades de Friburgo e Teresópolis, flageladas pela catástrofe de janeiro de 2011, só agora causa espanto, passados seis meses de inação do poder público mais próximo, que é o das prefeituras ? Como interpretar o desvio das verbas federais, que não se utilizam para o seu escopo precípuo ? Então, não há limite para a corrupção ? Será que a pulsão de levar vantagem em tudo, até mesmo em obras que visam a minorar as perdas de gente próxima, quiçá até conhecida, como os moradores do mesmo município, faça esses responsáveis pelos fundos públicos esquecer toda e qualquer atitude, já não digo de compadecimento e solidariedade, mas de mínima cautela, em face da enormidade do desastre e do escândalo da longa inação ?
          Se fosse um exemplo isolado, poder-se-ía até dizer que este comportamento reprovável se dissocia de uma realidade de gente honesta, que sabe distinguir muito bem, na lição do político Raul Fernandes, entre fazenda pública e privada ?
          Através da mídia, nos chega a voz da dissonância de atitude que se reproduz com desenvoltura não só em âmbito municipal, mas estadual e federal. Diante de tal quadro, a reação pode alternar-se entre o cinismo do desengano e a revolta dos que se recusam a aceitar as cenas da corrupção e do corporativismo como norma prevalente.
          Os exemplos são tantos que a perplexidade da sociedade pode desaguar no derrotismo da passividade, ou na cólera de quem não se vê representado por tão desenfreada alienação.
          Defrontando-se com este estado de coisas, a sociedade já mandou muitos recados, como o voto de protesto, que em tempo recente se viu na eleição de um palhaço, com simplória plataforma (pior não fica).
          Será sempre uma mensagem, mas prefiro atitudes mais construtivas, fundadas na memória e na esperança.
          Talvez esteja repetindo o ingênuo, teimoso otimismo dos saudosistas acima referidos. No entanto,devemos continuar trabalhando por iniciativas como a Lei da Ficha Limpa. Não importa que a vontade do povo tenha sido temporariamente escanteada.
          Esta lei complementar nr. 135 pode ter sido vítima de uma situação surrealista. Mas não se deve jamais esquecer que a pressão popular não é uma ficção. Basta relembrar a trajetória dessa iniciativa do Movimento contra a corrupção eleitoral (MCCE) por Câmara e Senado. Malgrado a má-vontade, acabou votado por unanimidade.
          Por isso, não nos devemos desencorajar. Esta é uma luta comprida. E os seus êxitos carecem de ser comemorados. Agir doutra forma trará apenas mais água para o moinho da corrupção.

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