Para muitos, a morte será sempre um mistério. Através dos séculos, o seu desafio persiste, indiferente aos mitos e às religiões. Entre os homens, decerto, se as exceções pululam, o temor, expresso ou não, paira na cabeceira do enfermo.
O extremo sacrifício pode ser fruto do desespero do suicida, ou do fanatismo de quem crê poder chegar ao vasto paraíso e às huris através da desgraça e da destruição alheias. A fé, no entanto, pode ter muitos disfarces. Dessarte, a deparamos também na serena partida dos justos, como na morte pentecostal de João XXIII.
As variações não param por aí. Dos persas, Heródoto nos conta que os magos faziam com que os cadáveres antes do embalsamento fossem arrastados por cães ou aves. Já os tibetanos, pela crença na metempsicose, preferem os funerais a céu aberto. Por sua vez, os gregos nos falam de Caronte e da mítica barca. Somente o astuto Ulisses voltaria do Hades e de seus domínios, em que vagueiam sombras sem memória.
Não cansarei o leitor com mais exemplos, nem falarei de Dante e de sua busca pela amada Beatriz. Será talvez a metafórica ponte que o poema nos dá, por escolher o dialeto toscano, ao invés do latim.
Ganhou o Ocidente, com a Renascença, uma de suas obras primas, enquanto a lingua morta de Cícero e Virgílio teria sobrevida nos tratados eruditos e no verbo eclesial.
Entretanto, o seu uso igualmente se estenderia aos enterros e cemitérios. Está aí o pórtico do São João Batista a fazer aos ilustres passageiros o maroto convite de voltar – e para sempre – àquele campo santo.
Nesse contexto, cabe recordar a frase ‘de mortuis nil nisi bene’. O latim vulgar é transposição, nos ensina o dicionário de sentenças latinas e gregas, do preceito grego ‘não fales mal de quem está morto’, atribuído por Diógenes Laércio a Quilon.
A aura da morte, essa misteriosa passagem, estreita e sombria vereda para muitos, nos induz, por espontânea reação, à postura de natural respeito. O lenço branco pode servir para aceno da despedida, muita vez vertido no pranto, ou na reserva imposta pelo costume, na trégua dada às paixões do dia-a-dia.
Pouco importa. É ritual digno e necessário, que se insere na homenagem devida àquele que já partiu. E talvez, porque associado à liturgia, tal comportamento se justifica na língua morta.
Essas considerações são feitas por causa do recente passamento de Itamar Franco. Diante do seu caixão a visão da conjunta homenagem prestada, da esquerda para a direita, por José Serra, Aécio Neves, Fernando Henrique e Dilma Rousseff, antes que um acaso fotográfico, reflete a mensagem do ex-presidente, capaz de colher o respeito de politicos rivais e com posições antagônicas. O próprio Itamar sorriria com aprovação para a generosidade da Presidenta que, em estendendo a mão a mandatário antes criticado, dá boa lição da grandeza a seu criador.
Alguém, quiçá inebriado pela atual posição de comentarista quase cotidiano na segunda página da Folha, permitiu-se esquecer a sabedoria antiga, quando se referiu em termos depreciativos ao papel de Itamar Franco. Escapou-lhe que o fato de lá haver chegado de modo acidental não implica forçosamente em desdouro. De um curto mandato, deixou boas memórias – a honradez, a mineira simplicidade e o Plano Real. O próprio FHC sublinha que Itamar soube presidir a realização de obra benéfica para o povo, na época denunciada por um partido como burla eleitoreira.
Nesse contexto, o episódio da audiência a Antonio Carlos Magalhães não é a simples vinheta que aparenta ser. Com a devastadora oportunidade de golpe de mestre, Itamar, na sua mineira matreirice, exporia ACM na praça pública da imprensa. Mostrou então saber ser protagonista voluntário de algo que bem compreendia. As supostas revelações de ACM contra o desafeto Jutahy Magalhães Júnior, na presença de jornalistas e fotógrafos, se transformaram de temido dossiê em simples, anódinos recortes de jornal, que nada comprovavam.
Itamar era assim. A sua singeleza devia ser manuseada com cuidado.
(Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo )
terça-feira, 5 de julho de 2011
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