sábado, 18 de junho de 2011

A Revolução e a História

           Às vezes, as ausências, mesmo involuntárias, podem nos trazer, como um ganho secundário, ensinamentos de alguma valia.
           Veja-se, por exemplo, a revolução árabe democrática. Aves de mau agouro piam com insistência seu passamento. Que todos aqueles que se locupletam com as benesses, mesmo absurdas, do poder desejam decerto intensamente.
           Ora, o poder, como nos ensina mestre Michel Foucault, não é criatura solitária, que se acredita exercê-lo em plenitude. O poder, na verdade, vem do alto, mas também vem de baixo. Qualquer mesinha de burocrata, a quem se atribua a faculdade de dispensar a outrem o direito de fazer, ou não fazer alguma coisa, por pequena e mesquinha que seja, tende a constituir um núcleo significante na sua medida de poder – capacidade de ação e de omissão - e, por conseguinte, de sua dileta companheira, a corrupção.
           Mas voltemos à revolução gerada pelo sacrifício extremo de Mohamed Bouazizi, o humilde verdureiro tunisiano. Com força inaudita – que a chusma de tiranos temia e mais ainda por ignorar-lhe o momento da epifania – os ventos da liberdade têm soprado pelos muitos cantos da nação árabe.
           A vontade de ser livre, se ela é afeita a longos letargos, como as hibernações animais, possui um prazo. Por mais inconstante e volúvel que seja tal condição, a sua presença sempre incomodará os tiranos – tanto os patéticos, como o coronel Kadaffi, quanto os soturnos, como Bashar al-Assad, e os burocráticos, como Mahmoud Ahmadinejad - porque na sua mais ima consciência ela há de perdurar, a exemplo da lembrança indelevel do crime para o seu autor por enquanto impune.
           E essa vontade vai buscar a sua teimosia e perseverança na terra da justiça. Todo excesso de poder será castigado mais cedo ou mais tarde. Para a História, mestra incompreensível e imprevisível, este axioma se afigura imperecível. Em verdade, um desconhecido o escreveu, com firmes cinzeladas de artífice, no mármore ático. Pouco importa, que não o decifrem logo, e que a escrita caia sob vistas ignaras, incapazes de dar-lhe sentido.
           Pois esse sentido lá está, a aguardar, paciente, quem irá manifestá-lo aos quatro ventos. Os tiranos, nos seus múltiplos avatares, têm disso, mais do que a ciência, a angústia que nasce do erro cometido. Como das orelhas de asno do legendário rei Midas, que debalde as tenta esconder, os ínfimos caniços lacustres não guardarão o segredo, também a liberdade e sobretudo a própria consciência há de irromper, com o ímpeto das águas represadas, nos domínios das diversas majestades, todas unidas pela falta inicial (hamartía) do abuso do poder.
           Os chineses ensinam que os tempos interessantes são aqueles em que a história, muda e imóvel, começa a falar e a incomodar. O interesse está na mudança que, a despeito de necessária, jamais será indolor.
           No mundo árabe, ora assistimos a espetáculo – que se é apenas um espetáculo, como diria Goethe – vai, cedo ou tarde, ministrar verdades por demasiado tempo soterradas, sob disfarces os mais diversos.
           Assim, as chacinas de Hafez al-Assad, que o mundo dito civilizado fingira ignorar, ora perpetradas por canhestro herdeiro Bashar al-Assad, vão explodir além das fronteiras norte, para receber a condenação de irmão muçulmano, que está no poder por vontade do povo. Na Arábia saudita, este fóssil absolutista, cuja existência serve a tantos interesses, expressão da injustiça, tão retrógrada e mesquinha quanto o regime, é contestada, com aquela pujança imanente nos grandes movimentos de águas e terras.
           Diriam uns que é incrível denegar em pleno século XXI a todo o gênero feminino o direito de corriqueira liberdade, a de dirigir um veículo. Na verdade, as injustiças, como o mandato daquele deputado que se lixa da opinião pública, sóem ser esquizofrênicas no desprezo da realidade contrastante. E elas só se evaporarão, quando as causas imprescindíveis para o seu desaparecimento – como o movimento das mulheres do reino do sultão Abdullah – lhe tornarem insustentável a manutenção.
           Dessarte, para mostrar que o rei e os seus aliados do clero wahbita não mais hão de prevalecer nas suas absurdas determinações - que sustentam e implementam muitas outras injustiças – todo o gênero feminino se põe ao volante e mostra, por um átimo, do que é capaz.
           Por fim,no Ocidente da inquieta nação árabe, próximo à península ibérica e a pranteada Andaluzia perdida, o sucessor da mais longa dinastia, a alauíta – que professa ser descendente direta do Profeta – o Sultão Mohamed VI, do Marrocos, promete desfazer-se do seu caráter ‘sagrado’. Renuncia, outrossim, a aspectos importantes do poder executivo, mas conserva o título de Comandante dos Fiéis, com exclusiva competência para os assuntos religiosos.
           O futuro dirá se tais concessões, escritas no palimpsesto da crônica, hão de perdurar, ou se ficarão sujeitas, no curto prazo, aos caprichos da evolução e da involução.
           O que o porvir, no entanto, não mais poderá dizer é que a revolução árabe democrática não existe ou representa apenas disforme criatura na mente de um bando de insensatos.



(Fonte: O Globo )

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