domingo, 26 de junho de 2011

Colcha de Retalhos LXXXIII

A Revolução Síria (Contd.)


           Há cerca de três meses os protestos e depois as passeatas e manifestações democráticas se estendem por toda a Síria. Os Assad se acreditam donatários desta nação, que é importante geopolíticamente, posto que não disponha de importantes jazidas nem de grandes correntes comerciais.
           Como se sabe, Bashar al-Assad sucedeu, de forma quase dinástica, ao pai Hafez al-Assad. Este último, com habilidade, soubera coser uma coalizão liderada por sua seita islamita minoritária (os alauítas), em país de substancial maioria sunita.
           Quando o seu regime foi contestado, reagiu com inusitada brutalidade, contra o suposto levante de Hama, em 1982. Com benevolente indiferença, a comunidade internacional assistiu impassível ao massacre, de que a exata magnitude ficou desconhecida (entre dez e vinte mil mortos).
           O oftalmologista Bashar al-Assad, segundo filho de Hafez, não havia sido preparado para suceder ao pai, o que deveria caber ao filho primogênito, Bassel al-Assad . As Parcas, no entanto, decidiram de modo diverso, com sua morte acidental em 1994.
           Em junho de 2000, Bashar assumiria. O seu irmão Maher al-Assad se encarregaria do braço armado, com o comando da 4ª Divisão do Exército, considerada de elite, pelo treinamento, armamento e soldo a ela atribuídos. No plano familiar, reeditava, no que concerne ao irmão presidente, o papel antes desempenhado no exército por seu tio Rifaat al-Assad, no que tange ao ditador Hafez. O clã há de esperar que as atrações do poder não levem Maher a trair Bashar, como intentou fazê-lo Rifaat, ao ensejo de um problema cardíaco do irmão Hafez (havido na década de oitenta, anos depois da chacina de Hama).
          Malgrado a furiosa repressão – o macabro total de mortos beira os mil e quinhentos – a contestação ao tirano Bashar não esmorece. Já houve episódios de confraternização entre povo e tropas militares, como na cidade de Jisr al-Shugour, ao norte, na fronteira com a Turquia.
         O próprio Erdogan, recentemente reconduzido – mas não com a maioria desejada para modificar a seu talante a constituição turca – censurou com palavras acerbas o vizinho Bashar, e a maneira com que encara os direitos humanos de seus conterrâneos.
         Depois de dois meses daquele discurso na dócil assembleia, em que prometeu uma compreensão e reformas que a realidade trataria de desmentir prontamente, o presidente Bashar al-Assad retorna à tribuna. Os autocratas, quando contestados, parecem apegar-se não só ao poder, mas à lisonja e aos mirabolantes cenários com que os embalam .
         Que credibilidade é suscetível de ter esse ditador quando oferece a abertura de um ‘diálogo nacional’ que seria instrumental, segundo o seu discurso, a abrir uma nova fase na evolução política do país ? Na verdade, será tendente para zero.
         A população síria pode não ter a informação nem a sofisticação de outras, mas não só o longo domínio da família Assad, senão o curso que ora lhe é ministrado de maneira intensiva, a terá inteirado sem margem de dúvida de certos dados básicos.
         O tirano pode tecer palavras que falem de concórdia, confiança e um futuro radioso. Sem embargo, os esbirros a seu serviço preferem outro modo de discurso, que é o dos ataques dos ditos ‘atiradores de elite’, a compreensão de uma carga de cavalaria contra manifestantes indefesos, a detenção indiscriminada e com rito simplificada, e a oferta generosa da paz dos cemitérios ou a do sofrimento dos porões da tortura e das fétidas masmorras.
         O sonho de Bashar semelha haver sido a localização da revolução, a exemplo da lição do trucidamento de Hama. Terá pensado possível este esquema quando eclodiram os primeiros distúrbios na cidade de Dara, ao sul, na fronteira com a Jordânia. Castigada pela seca, e a consequente penúria, existiria razão material para explicar a irrupção do descontentamento. A teoria, no entanto, teve a efêmera duração dos sonhos, porque a carestia representava tão só um dos fatores da insatisfação daqueles cidadãos.
        Como em vegetação ressequida por longa estiagem, o incêndio da revolta síria se propagou com a incontratável força inerente em tais fenômenos naturais. Por outro lado, as carnificinas podem, no contexto do desespero e da hostilidade, imitar os processos de cultivo. Do sangue vertido, da falta de outras opções e da difusa consciência de uma revolta que não é apanágio de ‘grupos armados organizados’ como buscam veicular os órgãos do regime, irão surgir na anti-lógica da revolução novos combatentes cuja visão tende a localizar-se, com as cores do ódio, no carniceiro de Damasco e nas suas tropas auxiliares.
        O que dizer do presente impasse, referido por representantes da oposição ? A frase “a rua não conseguiu quebrar os homens do poder, e o poder tampouco conseguiu quebrar a gente da rua” semelha indicar uma situação indefinida, resumido na suposta impossibilidade de vitória de um ou outro lado.
        A fórmula, atribuída a oposicionista, na verdade tem mais a ver com os estamentos interessados na manutenção do statu quo. Nessa interpretação, o impasse seria a abertura para um processo de negociação. Ora, em um estágio como o atual, a negociação só tenderia a mascarar uma retomada do controle pela situação.
        Dentre os princípios do processo revolucionário, o pactuar com o palácio equivale à renúncia dos objetivos do movimento. Neste momento, se afigura difícil prognosticar a evolução dos eventos. No entanto, a quebra da regra fundamental da revolução, se porventura alcançada por Assad e as forças que têm a perder com a sua queda, seria o prenúncio seguro da próxima sufocação do levante popular sírio.
        Será que o povo sírio, após arrostar as tropas e as balas da camarilha de al-Assad,
irá desistir da caminhada ? Para quem já foi tão longe, e diante dos falsos apelos e do nervosismo palaciano, será forte a tentação de prosseguir na empresa, que afinal, ao contrário do que dizem os ansiosos oficialistas, é de muitos e não de poucos ?


A soja e o desmate amazônico



            Segundo noticia a Folha, em reportagem de Claudio Ângelo, o plantio da soja voltou a crescer, em especial no Mato Grosso e em Rondônia. Tal se deve ao canto da sereia do mercado mundial, com a pronunciada elevação nas cotações do grão de soja.
            Por trás da situação que se configura – o consequente irresponsável aumento do desmatamento para abrir mais espaço para o cultivo e para os colimados pingues lucros a amealhar com a fome chinesa deste grão - há de computar-se igualmente a cumplicidade da autoridade, por intermédio de obras de infraestrutura voltadas para facilitar o escoamento da safra.
            Em troca de lucros imediatos, se empobrece o meio ambiente e se vai criando a terra sáfara, que é o resultado do abate acelerado.
            Enquanto os congressos e as conferências falam sobre o desenvolvimento sustentado e as possibilidades de o cultivo e o pastoreio conviverem com a floresta nativa, os órgãos do meio ambiente e seus prepostos contemplam não a marcha do progresso ou a da implementação de tais doutos projetos, mas a criação diuturna de outra realidade, que nos deixará sem floresta e, portanto, com abrupta queda nos recursos hídricos, naquela infernal cadeia cujo filme já passou na Malásia, em boa parte da África, na Índia e na China.
           Como os imitadores que nos dizem os nossos vizinhos sermos, não semelha faltar muito para que esta peculiar realidade nos abrace, com tudo aquilo que a cega ganância há de proporcionar. Então aqueles que afagam essa gente incauta, mas ambiciosa, com elogios para o ‘celeiro do mundo’ com a rapidez dos ratos a abandonarem os navios que afundam, partirão à cata de novos transitórios provedores.
           E as nossas florestas, a sua biodiversidade e a riqueza imensa que ainda contêm, só as veremos nos parques, nas bibliotecas, nas cinematecas e na glória da internet.

Tu quoque, Ferreira Gullar !

          Pelo fato de ser alguém que todo domingo lê com prazer a crônica semanal de Ferreira Gullar, publicada na última página da Ilustrada da Folha, devo confessar que o seu escrito de hoje ‘Razões que a razão desconhece’ me surpreendeu. A única característica que continuava presente é o estilo escorreito a que seus leitores estão acostumados.
          No entanto, os conceitos políticos parecem ter saído da pena de colaboradores da Veja e de jornalões. A par de uma raiva pequeno-burguesa e de superficialidade de quem dá impressão de não se haver inteirado de quem realmente é Cesare Battisti, Gullar envereda por uma polêmica toldada pela paixão e o preconceito.
         Não entrevi nessas linhas a natureza generosa do brasileiro. Nem a vontade de informar o leitor acerca dos argumentos favoráveis a Battisti.
         Gullar aceita como se fora verídica a estória de que o jovem matou quatro italianos. Omite a circunstância de que foi processado e julgado à revelia, e que seu acusador era um delator-premiado. Não se pergunta se não é estranho que, apesar da idade, houvesse desempenhado papel tão desproporcional à sua posição no grupo. Sequer lhe terá passado pela mente a possibilidade de que os antigos compagni se tenham valido da sua oportuna ausência para torná-lo o responsável pelos quatro assassínios.
         Os relatos fascistóides que buscam incriminá-lo dizem que o Presidente Jacques Chirac o expulsou da França, por causa das acusações que pesavam contra ele. Esquecem, contudo, de dizer que a Itália não tugiu nem mugiu enquanto François Mitterrand era Presidente. Porque Mitterrand o acolheu e Chirac o escorraçou ? Porque a esquerda, meu caro Gullar, costuma não só ser generosa, senão ter a preocupação de evitar a vitimização de inocentes. Terá a direita que primeiro acusa e depois se preocupa em fundamentar os doestos, o mesmo sentido de equanimidade ?
         Quem se der ao trabalho de ler o meu blog verá que na minha carteira não está o qualificativo de defensor do PT. Tal fato, no entanto, não me exime de aplaudir a iniciativa tomada pelo Ministro Tarso Genro ao conceder-lhe o refúgio, assim como o gesto, ainda que tardio, do Presidente Lula em negar-lhe a extradição.
         O Brasil é um país de gente cordial e hospitaleira. Assim como sóem ser os italianos, a quem bem conheço. A lógica nos ensina que devemos evitar confundir a parte pelo todo. As fanfarronadas do governo de Silvio Berlusconi, com os seus ex-neo-fascistas e secessionistas não refletem o espírito italiano.
         Tampouco o vejo à vontade na companhia da colérica e preconceituosa direita.
         Por favor, senhor Gullar, volte a escrever com o espírito e o bom senso que lhe trouxeram a admiração de tantos leitores, como o signatário desta.


Estado de saúde de Hugo Chávez (Contd.)


         Não sei como realmente está a saúde do presidente da Venezuela. Contudo, mais do que o jornal “Nuevo Herald”, de Miami, que, valendo-se de fontes de inteligência americana, reportou-se a suposto diagnóstico que Hugo Chávez, de 56 anos, estaria sofrendo de um “quadro clínico crítico”, o que me impressiona é o silêncio desse líder latino-americano.
         É difícil não interpretar tal mutismo como sinal de uma crise grave, quem sabe a mais séria que terá enfrentado.
         Na Roma Pontífícia – e não se deve esquecer que a Itália laica acabou com a soberania temporal do Santo Padre apenas em 1870 – a morte do Papa sempre constituíu uma constante. No entanto, os seus familiares e o círculo eclesial a ele chegado, sempre se empenhou em dizer que ‘Sua Santidade goza de ótima saúde’.
         A que os romanos, que eram os súditos perenes dos Sucessores de Pedro, acrescentavam, de preferência em dialeto romanesco: “até que morra.”


Processo contra Thomas Drake

         O processo marcado para iniciar-se neste mês de junho, movido pelo Governo dos Estados Unidos contra Thomas Drake, ex-diretor da Agência de Segurança Nacional (N.S.A.) não mais se realizará. Numa derrota para a Administração Obama, os advogados de Drake chegaram a acordo judicial (plea agreement) com o Departamento de Justiça. O que se prefigurava com possibilidade de ser considerado um caso célebre termina de forma inglória para a equipe governamental.
         Quais os termos do acordo ? Thomas Drake reconhecerá a sua culpa em exceder o uso autorizado de um computador, que é uma contravenção (misdemeanor). Por sua vez, o Governo renunciará a dez acusações criminais (felony), o que poderia mandar Drake para a prisão pelo resto de sua vida.
         Ainda conforme o combinado, Drake comparecerá em uma Corte Federal, em Baltimore, e a sentença deverá se seguir em breve data. A promotoria não se oporá se Drake não for sentenciado a cumprir pena. Existe a possibilidade de Drake ser setenciado a no máximo um ano de detenção, posto que, dadas as particularidades do caso, parece provável que a sentença seja de um ano de liberdade condicional.
         O que poderia ser um caso semelhante ao enfrentado por Daniel Ellsberg (por seu vazamento dos Papéis do Pentágono, em 1973 – cuja acusação acabou sendo interrompida), começou a dar chabu quando a equipe do governo anunciou que pretendia retirar algumas provas, a fim de evitar de arriscar expor uma não-identificada tecnologia de telecomunicação empregada pela vasta rede de espionagem eletrônica da N.S.A.
         Outro erro cometido pela zelosa promotoria seria não prever a circunstância de que o processo contra Drake desencorajaria os funcionários governamentais de denunciar instâncias de abuso e de desperdício, sobretudo no que concerne à comunidade estadunidense de inteligência.
        Qual é o teor da acusação contra Thomas Drake ? De fevereiro de 2006 até março de 2007, Drake acessou um sistema chamado NSANet, obteve informação oficial da NSA e a transmitiu oralmente e por escrito a outra pessoa não-autorizada a recebê-la. Se bem que tal pessoa não seja indicada, o vazamento de Drake foi para Siobham Gorman,reporter, que escreveu uma série premiada de artigos no Baltimore Sun sobre a N.S.A. Gorman hoje trabalha no Wall Street Journal.
        O caso da Administração Obama contra Drake começou a fazer água quando o juiz distrital Richard Bennett, em recente despacho, rejeitou a tentativa dos promotores de encobrir as referências “ao eventual emprego pela NSA de uma tecnologia específica de telecomunicação”. Por causa da decisão judicial, a promotoria iria retirar quatro documentos e eliminar qualquer alusão à tecnologia em dois outros.
       Ainda que o governo nunca haja descrito os documentos classificados que diz ter encontrado na casa de Drake em Maryland, além de indicar-lhes os títulos e a condição de serem secretos.
       Não obstante, eles provavelmente se relacionam com o debate interno da NSA sobre TrailBlazer (abridor de sendas), que é um projeto mal-encaminhado, lançado em 2002 (sob o impacto do ataque contra as Torres Gêmeas), para utilizar pessoal contratado para reestrurar os vastos sistemas de computação da agência para captar e selecionar (screen) a informação que flui para os computadores da NSA a partir da internet e de celulares. O custo de TrailBlazer foi de um bilhão e duzentos milhões de dólares, mas não funcionou segundo o plano (tratava-se de captar uma grande quantidade de informação, cuja legalidade é discutível, eis que para obter esse tipo de informação pela FISA, é necessário um mandado judicial, o que a Administração Bush não queria, por consider lento o procedimento).
       O ex-diretor Thomas Drake, que é Republicano, apoiou um sistema interno da NSA, com custos muito mais módicos. No seu entender, este sistema poderia ter coletado informação crítica sobre al-Qaida, antes da incursão terrorista de onze de setembro de 2001. Drake também foi crítico da espionagem doméstica realizada pela NSA, depois dos atentados de setembro, eis que está ao arrepio da lei.
       Como se sabe o Governo para montar o processo contra Drake se serviu da Lei sobre Espionagem, de 1917, que não é utilizada amiúde, e que foi aplicada no caso do espião Aldrich Ames, da CIA.
       Provocou surpresa a decisão da Administração de processar Drake. Como candidato, Obama se mostrara favorável a um governo mais aberto, louvando funcionários federais que reportassem abusos ou erros (whistle blowers).
       Ao assumir o governo dos Estados Unidos, a sua orientação no particular não diferiu daquela de seu predecessor George W. Bush. Nesse sentido, a sua Administração se empenhou em evitar os vazamentos de segurança nacional, com processos contra cinco vazadores dos quadros do governo, utilizando para tanto a legislação sobre espionagem.


( Fontes: International Herald Tribune, Folha de S. Paulo, The New Yorker, Huffington Post)

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