sábado, 11 de junho de 2011

Eleições na Turquia

           As eleições de amanhã na Turquia não são um compromisso burocrático. O hábil líder do partido de Justiça e Desenvolvimento (AKP), Recip Erdogan, tem contornado até o presente as resistências laicas ao suposto islamismo moderado de seu partido, que se achá há cerca de dez anos no poder.
           Erdogan se propõe conseguir objetivo até há pouco impensável. O moderno estado turco fora levantado sobre as ruínas do império otomano pelo herói nacional Mustafá Kemal, em bases não-confessionais, reformistas e abertas ao Ocidente.
           De forma não-explícita e incremental, Erdogan e o seu partido buscam desestabilizar o paradigma kemalista. Para tanto, a sua atuação – para evitar os dissabores do anterior partido islâmico – privilegia o gradualismo e a circularidade. Evitando até agora a confrontação com as teses do estado reconstruído por Mustafá Kemal, o Ataturk, o AKP de Erdogan e de Abdullah Gul busca contornar os núcleos de resistência contra a alegada moderação islâmica, núcleos esses que se situam notadamente nos estamentos liberais e laicos, assim como no exército e na corte superior de justiça.
           A habilidade do Primeiro Ministro Recip Erdogan como fautor da nova ordem não pode ser subestimada. Para todos os efeitos, a Turquia é uma democracia. Não obstante toda a destra tenacidade de fazer valer a contradictio in adjectio (a contradição ínsita no atributo) de que é possível a convivência do instituto ocidental da democracia com os princípios islâmicos, se aplicados de forma atenuada, a realidade nem sempre discernível para o observador internacional tem demonstrado ser a indumentária democrática para a república islâmica de Erdogan o equivalente ao disfarce do lobo com a pele de cordeiro.
           Dois exemplos desses mecanismos de controle da democracia no receituário de Erdogan. Existe no código penal daquele país artigo que prescreve o respeito por escritores e jornalistas aos ‘princípios turcos’. Ao caráter vago e insidiosamente ambíguo dessa determidação acompanham penas bastante objetivas. Essa luz amarela sobre os perigos da liberdade de imprensa pode ser entendida como espécie de metáfora na maneira de atuação da repressão islâmica dita ‘moderada’. De forma muita vez indireta, sinuosa, circular, o islamismo democrático do AKP colhe os próprios objetivos.
           Comportamento similar é aplicado no que tange à suposta liberdade da mulher observar ou não a norma do uso do véu islâmico. Dessarte, para o advogado ou profissional liberal cuja esposa não tenha por princípio o cobrir os cabelos com o lenço costumeiro, não haverá serviços nem encomendas das repartições estatais, ora sob a direção do AKP. A falta de proibição ostensiva é suprida por um virtual e muito eficaz deserto de comissões.
           Essa regra, elástica nas suas aplicações, visa a singularizar aqueles discrepantes dos princípios islâmicos, a que se reservam modalidades de uma morte civil. A eficácia no emprego está muita vez na razão inversa de um caráter direto.
           Subsistem poucas dúvidas de que Erdogan, com o apoio das camadas simpatizantes do islamismo e das massas rurais e interioranas, tenderá a aproximar-se dos cinquenta por cento dos votos. A sua banda de música, no entanto, poderá silenciar se o Partido Republicano do Povo (CHP), sob a nova liderança de Kemal Kiliçdaroglu, lograr atingir trinta por cento dos sufrágios e, assim, eleger bancada em condições de constitucionalmente inviabilizar as reformas perseguidas pelo líder do AKP.
           Essas reformas objetivam sobretudo desmantelar as garantias constitucionais para a permanência do estado laico, nos moldes kemalistas. O novo líder do CHP parece em condições de contra-arrestar a maré islamista, através da motivação dos segmentos urbanos e laicos, mas sem afastar-se de temas que sejam do interesse das classes menos favorecidas.
           O aumento do desemprego que tem atingido os jovens, assim como os recém-formados, pode aumentar o número de simpatizantes do partido leigo e kemalista. Nesse quadro, um dos sinais de insatisfação com o governo Erdogan pode ser visto na praça Taksim, no centro de Istambul. Essa contestação da praça – que o grande espaço da Tahrir simbolizou no Cairo e que se tem replicado em outros países – na antiga Constantinopla deseja veicular o protesto contra a precariedade do trabalho, o desemprego e o controle sobre as universidades.
           Não há dúvida de que a luta é desigual, e que o AKP se acha fortemente arrimado nas silenciosas massas que o respaldam. Mas o crescente perigo que o seu domínio faz pairar sobre o estado turco pode ser o estímulo para o bom combate.



( Fonte: O Globo )

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