No seu mais recente filme Paris at Midnight (2011), Woody Allen não teme adentrar por caminho já percorrido por outros diretores como René Clair (Belles de Nuit). A estória começa com um casal de noivos – Owen Wilson no papel de Gil Pender, e Rachel McAdams (Inez). Ele, apesar de roteirista de cinema com grande sucesso comercial, deseja deixar a rendosa mediocridade por incerta carreira no romance.
Por sua vez, a noiva não lhe estimula os pendores por voos literários. Negativa, é a própria voz da segurança filisteia, buscando desencorajar Gil a cada passo. Para tanto tem o apoio do pai, John (Kurt Fuller) e da mãe, Helen (Mimi Kennedy).
Malgrado a cercania das bodas, as conversas do quarteto não pressagiam o entendimento . O futuro sogro é republicano de boa cepa e ainda por cima admirador dos ultra-direitistas do Tea Party, enquanto Gil é um liberal progressista, sufragante dos democratas. Pouco falta para que John o considere como cripto-comunista...
Também a noiva Inez e seus pais são típicos americanos ricos insensíveis aos sortilégios de Paris. Gravitam em torno de restaurantes caros, e quase lamentam estarem tão longe dos States...
O quadro não melhora para Gil quando surge outro casal de noivos. O professor sabe-tudo, Michael Sheen, já teve um namorico no passado com Inez, e as boas vibrações entre os dois permanecem.
O encontro imprevisto dos dois casais no restaurante não acena com melhores prenúncios para a relação de Gil e Inez. O barbudinho Sheen e a companheira se inundam a noiva com efusões carinhosas, ignoram por completo o esposo prometido.
Como os programas da preferência dos demais não atraem ao protagonista, ele se descola do grupo. Descorçoado anda pela Rive gauche, com suas vias de paralelepípedos suarentos. Afinal, cansado senta-se nos degraus de uma escadaria.
Então batem as badaladas da meia-noite. Surge na rua deserta magnífico sedan Duesenberg amarelo, modelo anos vinte, com o banco do chauffeur a descoberto, estribo e cabine, com vidraças protegidas por cortinetes entreabertos.
Gil atende ao chamado dos alegres passageiros, que o convidam para acompanhá-los à festa parisiense. Incrédulo, Gil se torna amigo de Scott e de Zelda. A verdade, por improvável, não tarda em penetrá-lo. Está na companhia do par Scott Fitzgerald e Zelda!
Vão a um restaurante dos twenties (anos vinte), com a sua atmosfera de desprendidos convivas e famosos artistas. Cole Porter canta ao piano e Ernest Hemingway, a um canto, recebe Gil com a máscula simpatia associada ao personagem.
Aos poucos o irrealismo da época passada se apossa de Gil Pender que busca estabelecer com as efígies dos roaring twenties (os barulhentos anos vinte) que estão à sua volta, com simpatia contrastante com a fria insensibilidade da noiva e sua família.
É a moveable feast daquela Paris com tantos expatriados americanos de que o protagonista se descobre participante acidental.
Aqui um parêntese para referir do estro de Woody Allen ao encaminhar-nos sem os solavancos das abruptas ou tenteantes passagens para atmosfera que conhecemos de antigos filmes e de páginas amarelecidas de frágeis brochuras. Não se trata do realismo mágico da Rosa do Cairo, mas é igualmente natural e previsível como um sonho.
A volta ao passado é um anseio de homens e mulheres, que, tangidos pelas hediondas alimárias da velhice e da morte, anseiam por tal retorno, no fluido ambiente lixiviado das angústias e com as cores risonhas do imaginado feliz reencontro.
Se o tema do carrossel já foi versado por Arthur Schnitzler e Max Ophuls (La Ronde), será no filme de René Clair (1952) Les Belles de Nuit em que os personagens entram em sarabanda através do tempo. Essa visão retocada e rejuvenescida de míticas épocas, em que se apóia o saudosismo – a vontade incoercível de reviver o passado na sua juventude – é uma constante da literatura e da poesia, como nos atesta o quatrocentista François Villon : Où sont les neiges d’antan ? (aonde estão as neves de outrora ?)
Entretanto, Woody Allen sabe manter a respectiva originalidade, em terreno tão palmilhado por poetas, escritores, teatrólogos e cineastas. Mesmo com a sua travessia em campos antes amanhados, é visível a chancela e o estilo próprios.
As noites seguintes se caracterizam pela crescente separação entre os noivos Gil e Inez. Atraído pelas noitadas buliçosas ele se recusa a acompanhar a noiva nos seus insossos programas noturnos. A cada badalada da tenra noite parisiense, ele adentra a viatura que o leva para os locais onde circulam escritores, pintores e músicos da festa móvel (moveable feast) de que nos escreve Hemingway.
Em um desses ambientes encontra a namorada de Pablo Picasso, a jovem Adriana (Marion Cotillard). Na mútua simpatia da dupla, Gil conta seu plano – sugerido por Hemingway – de mostrar o manuscrito de seu romance a Gertrude Stein.A jovem o encoraja, e na conversa desfia os seus diversos amores com Amadeo Modigliani, Braque e agora Picasso. No momento, todavia, há uma rival, o que tende a aproximá-la ainda mais de Gil Pender.
Em uma das poucas cenas diurnas do filme, os quatro vão ao museu Rodin, para contemplar a estátua do pensador. Aí Carla Bruni faz a sua ponta como guia. É contraditada pelo pernóstico professor (Michael Sheen), que discorda da assertiva de que Rodin tenha casado com sua antiga amante Rose. Gil invoca a respeito uma suposta biografia do escultor, que confirma a tese da guia, o que desconcerta o professor em geral tão seguro de si.
Com o passar dos dias, ou melhor, das noites, se aprofunda o fosso psicológico entre os prometidos noivos. Os encontros com Adriana se amiudam, e a atração mútua se reforça, com o auxílio da indiferença de Picasso, mais interessado em outra conquista.
Há um desfile de nomes dos anos vinte que mantém a aura e o fascínio daquela Paris exclusiva. Convencido por outro intelectual do acerto de procurar o monstro sagrado Gertrude Stein, Gil sai do feérico bar pela calçada da madrugada. Após um punhado de passos, se dá conta que não tem o endereço da escritora, e procura retornar ao ambiente que acabara de deixar. O encanto, contudo, já se desfez e ao invés de um bar depara com as modernas máquinas de uma lavanderia.
Os desaparecimentos noturnos de Gil intrigam cada vez mais o futuro sogro, que contrata um detetive para segui-lo nas noitadas. Os encontros do casalzinho Owen e Rachel descambam para a rispidez da noiva, que resolve desembestar por caminho alternativo.
Sobraçando o escrito que ambiciona submeter ao crivo de Gertrude Stein, conhece os pitorescos Salvador Dali, o fotógrafo Man Ray e o cineasta Luis Buñuel. Todos o recebem como se fosse mais um do grupo. Após reaproximar-se da jovem por quem se sente meio apaixonado, pode afastar-lhe a estranheza, ao aludir à crise havida com a noiva.
De carro vão à casa de Gertrude Stein, onde os recebe Alice B.Toklas. O livro de Gil, escarnecido pela filisteia noiva, é bem recebido por Stein e também por Hemingway, que ressalta o sofrimento nas suas páginas.
Durante o dia seguinte reaparece Carla Bruni, que ajuda Gil na tradução de livro de época que fala da namorada de Owen. Chega a dar-lhe o nome e a indicar que os dois se amariam depois de presenteá-la com brincos.
Animado, Gil furta dois brincos da noiva e fabrica uma caixinha com fita e tudo. O engano é quase descoberto pela chegada imprevista da ex-futura noiva, devido a um ameaço de infarto do pai republicano. A discussão sela a ruptura anunciada e Gil está livre para aguardar as badaladas da meia-noite, agora sob a um tanto assustada vigilância do detetive.
Adquire o par de brincos para Adriana, a moça amada (Marion Cotillard), embarca na sólita limusine e parte para o seu quinhão de noturna meta-realidade. Presenteada, ela concorda em caminhar pelos cais do Sena. Aí se deparam com Zelda prestes a jogar-se no rio. Eles a salvam, e não demoram em convencê-la que Scott continua apaixonado por ela.
Adriana (Marion) e Gil (Owen) se beijam, com o enlevo dos instantes que selam sentimentos já partilhados . A despeito do que sentem, e da fugida para a Belle Époque, com direito a passagem pelo Moulin Rouge e conversa com Toulouse Lautrec, Gil não atende ao apelo da jovem, a qual, um tanto blasée pela atmosfera dos anos vinte (para ela a normalidade), prefere investir em passado que acredita excitante, eis que o dia-a-dia circundante dos anos vinte a aborrece...
Aí Woody Allen deixa o nimbo agridoce que cerca a fuga bem sucedida de Gil Pender, com o ressaibo inopinado de uma refuga de Adriana (Marion Cotillard), que, com a aconchegante formosura, se apresta em embrenhar-se no ultra-passado de uma já distante Belle Époque.
Dentro da qualidade com que já nos acostumou o diretor nova-iorquino, ele nos parece oferecer um pouco mais em termos de sutil nostalgia – que é a paradoxal dor do regresso – a lugares nunca dantes visitados...
quinta-feira, 23 de junho de 2011
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