sábado, 3 de outubro de 2020

De Volta

Penso com muita tristeza na minha querida esposa, Ana Maria, que infelizmente não está mais entre nós. Sem embargo, como não dizer que ela permanecerá na minha memória para sempre ! Nós mortais nos preparamos para tais acontecimentos, sempre esperando pelo melhor, mas isto é claro nem de longe significa que possamos ter controle sobre eles. Francamente, fazemos a nossa parte, mas tal não significa que possamos amoldá-los a nosso favor. Falando abertamente, ainda que desejemos ter poder sobre eles,o fazemos com um sem querer, querendo. Por isso, nós nos preparamos para o que venha. Mas como isso poderá assegurar que um casal feliz possa dispor de uma alegre e contínua festa!? Minha muito querida Ana, com toda a sua imensa bondade, não seria poupada pelos ora dístantes, ora próximos deuses. E agora me sinto só, ainda que colimando a companhia dessa grande, maravilhosa Mulher que, com sua etérea presença, emoldura uma Existência. A divindade - que sinto distante - arrebatou para longe a sua bela e alegre presença, ela que sempre para mim seria a encarnação do Bem. É triste, mas com o peso forte da verdade, que com o passar do tempo o próprio fôlego começaria a desvelar-lhe parecença com o seu Pai Geraldo. São as linhas que o destino principia a lançar, e cuja realidade só se vai mostrando aos pouquinhos, como se de uma caixa sedosa e almofadada, um segredo vá tecendo devagar, como alguém que de súbito nos surpreenda com sinais que vá soprando baixo e suave, como se desejasse lançar véu tão diáfano quanto a brisa, que mais insinua do que afirma. Ela vem num sorriso, essa forma, feminina por vezes, que acena com luzes e sombras, e costuma deixar-nos inquietos, o olhar vago e inseguro, que muito diz, mas em frases soltas, que mais parecem acenos de lenço lançados a um viajante no tempo. Para mim virou uma espécie de mantra. Eu deveria ter levado a minha Ana para São Paulo, para que ela escapasse dessa corrente que, na aparência macia e suave, a conduzia para o Nada, que muitos disfarçam em um sorriso. Te lembras daquele livro meu de que perguntei a ti, na algazarra de uma festa, se acaso o tinhas lido? Com um suave, leve sopro e gesto, disseste um Não, que nós dois, já sentindo o Amor que nos uniria, sabíamos que era apenas uma negaça própria de um casal que começava a formar-se... Por isso, não é um lamento vão, quando se sente uma verdade que nos precede no tempo. Por isso mesmo, não temo repeti-lo, o lamento já é uma forma de afirmação, que no pior dos casos guardamos em nosso regaço. Os grandes Amores nós os abraçamos no tempo, e na corrente, por vezes turva, por vezes grandiosa, nos alenta para prosseguirmos em caminhada que pode parecer o signo do desalento para muitos, mas que, como a migalha ou a sobra de uma festa ruidosa, a de soprar-nos o solerte alento de uma outra realidade que é aquela do Amor que vem a ser maravilhoso enigma de uma outra Realidade, que teima contra a miséria humana, gritando bem alto por vezes, malgrado para muitos serão palavras perdidas. E em todo o Amor esta centelha estará presente, se ele for tecido com a seda suave de uma realidade que persiste em mostrar-se tão veraz quanto incômoda...

Um comentário:

Mauro disse...

Lindo e tocante ensaio, Pai.
Mauro