sexta-feira, 19 de junho de 2009

Khamenei, Moussavi e a Crise Iraniana

O Supremo líder da Teocracia do Irã pode estar há vinte anos no poder, mas o seu comportamento durante esta eleição presidencial não parece indicar que ele se tenha familiarizado com o pleno domínio dos instrumentos do mando.
Já dentro das normas do regime iraniano, a sucessão de Ali Khamenei ao ayatollah Khomeni não satisfizera o estamento dos mullahs, eis que a sua anterior ascensão a ayatollah correspondera mais às ligações políticas de Khamenei do que a seu conhecimento religioso. Este vício de origem não ensejaria que ele pudesse aspirar à ascendência usufruída pelo fundador do regime. Falto da desejada legitimidade islâmica, ele se veria constrangido a jogos de poder junto a diversas facções, para manter-se no ápice da hierarquia.
A despeito de rumores iniciais de que Mahmoud Ahmadinejad não mais gozava do apoio do líder supremo, por causa de sua gestão desastrosa em termos de finanças públicas, da carestia, e de posturas agressivas e radicais – como a absurda negação do Holocausto – o crescimento da candidatura de Mir Hussein Moussavi terá assustado a Khamenei. Sua surpreendente penetração junto ao eleitorado foi identificada pelos círculos mais próximos do chefe teocrático como a ressurgência da contestação ao regime, por mais que Moussavi haja sido um eficiente primeiro ministro ao tempo do ayatollah Khomeini e que, outrossim, seja um homem do regime, sempre havendo acatado a supremacia política do líder religioso.
Dessarte, seja diretamente pelo próprio Khamenei, seja persuadido pelas forças que o apóiam (exército e órgãos de segurança, notadamente), foi decidida uma intervenção no Ministério do Interior ( encarregado da organização das consultas eleitorais) para que fosse evitado o segundo turno, proclamando-se de plano Ahmadinejad como o vencedor do pleito, com grande diferença percentual sobre Moussavi.
Se a manipulação foi canhestra – a ponto de conceder a vitória a Ahmadinejad até no distrito de origem de Moussavi – a fraude se tornou ainda mais grosseira com a apuração reduzida a apenas um dia, quando a prática consueta é de três dias. Sublinhou, outrossim, o nervosismo do líder supremo a difusão pela televisão estatal de comunicado que entronizava a Mahmoud Ahmadinejad como o presidente-eleito.
A interferência na vontade popular – que beneficiava por segunda vez a Ahmadinejad, eis que também tivera ‘ajuda especial’ no segundo turno de 2005 – chocou os eleitores de Moussavi, sobretudo pela brutal diferença entre este, com 34,0% dos votos, e o candidato oficial, brindado com inflados 62,2%. Esse resultado contrariava não só as pesquisas, que atribuíam certa vantagem ao candidato da oposição, mas sobremodo ao sentir da maior parte do povo. A ‘apropriação indébita’ dos sufrágios ganhou logo expressão em cartazes levados por populares com a frase “quero o meu voto de volta”.
Em consequência, formou-se espontaneamente o movimento popular de protesto contra o esbulho na eleição presidencial. Diante da torpe arrogância do líder supremo, que se acreditara em condições de impor ao eleitorado iraniano uma ‘solução’ de estampo similar àquelas prevalentes em outros países islâmicos e nos antigos regimes comunistas, a reação, popular e pacífica, cresceu e se consolidou em manifestações multitudinárias.
Moussavi, considerado por alguns analistas um líder acidental, por sua oratória técnica e não-empolgante é reputado como desprovido de carisma. Junto com a reivindicação pela democracia a sua liderança se tem marcado e fortalecido. Respondendo à sua firmeza em não ceder às fortes pressões com que o Estado de Khamenei buscou tornar acéfalo o movimento social, seus partidários começaram a chamá-lo “o Gandhi do Irã”.
A sua trajetória anterior o fazia um ‘insider’ da elite dominante, sendo muito próximo do ayatollah Ruhollah Khomeini. Nessa condição, Moussavi foi primeiro ministro, enquanto Khamenei era o presidente, ambos sob a égide de Khomeini. Administrador competente, entrou ele várias vezes em choque contra Khamenei.
Será uma das ironias da história que personagem tão entrosado com o regime dos ayatollahs venha a evoluir para o papel que ora está exercendo. Abraçado por larga faixa societal, a sua imagem é alçada nas vastas demonstrações da oposição que têm atravessado as principais cidades do país, entoando seu nome em versos rimados que invocam os maiores mártires do Islam. E sua liderança tem sido não só respeitada, mas obedecida, como na organização dos cortejos com trajes e velas negras, em sinal de luto pelos diversos manifestantes assassinados pelos truculentos baseji (milícia islâmica).
Todas essas grandes concentrações populares, que, sem embargo do ceticismo de muitos, parecem renovar-se continuamente, alcançando números impressionantes – como as três milhões de pessoas de segunda-feira, na estimativa do prefeito de Teerã – semelham até o presente aumentar a cada dia, a ponto de que a aglomeração desta quinta-feira ter sido ainda maior do que a do início da semana.
Se com o passar dos dias parece inevitável não comparar esse grande movimento popular com as manifestações que antecederam a queda do regime do Xá Reza Pahlevi, restam muitas interrogações sobre como evoluirá a atual silenciosa, porém consistente contestação ao regime iraniano vigente.
No entanto, seria prematuro especular sobre a eventual queda do líder Khamenei. Não deve ser excluída
uma reação violenta do regime ameaçado, embora o resultante banho de sangue seria decerto um desastre, e talvez mais para o governo dos mullahs do que para as perspectivas a medio prazo de uma revolução democrática.
Traindo inegável descontrole, que volta a evidenciar o nervosismo que presidira à abrupta tentativa da solução pela fraude, o líder supremo baixou um ‘ultimatum religioso’ para que os protestadores terminem com a série de manifestações públicas. No seu entendimento, se as lideranças políticas persistirem na sua orientação de protesto, e se as manifestações prosseguirem, não se responsabiliza pelo que venha a ocorrer. Por outro lado, as eventuais mortes seriam imputáveis a esses líderes e aos próprios participantes das concentrações. A não-obediência os transformaria em inimigos do Islam, culpados de provocar a raiva e a dissenção na sociedade iraniana.
Fez em sermão televisado apaixonada apreciação da trajetória de Mahmoud Ahmadinejad, cuja eleição considerou definitiva. Em seu pronunciamento, o líder supremo reafirmou que a maioria da população iraniana tem fé nos atuais dirigentes da República islâmica.
Contudo, a situação apresenta uma grande fluidez que evoca tempos revolucionários. Sem embargo das peremptórias assertivas de Khamenei sobre o caráter definitivo da eleição de Ahmadinejad, não foi revogada a prévia promessa de que o Conselho dos Guardiães verifique a lisura do escrutínio do primeiro turno, assim como o convite aos três candidatos perdedores para que exponham as suas queixas ao Conselho.
A crise, como sobejamente o demonstra o próprio comportamento do ayatollah Ali Khamenei, representa séria contestação ao atual regime. Dependendo da atitude de Mir Hussein Moussavi e de seus seguidores, o futuro político do Irã está em aberto.

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