domingo, 14 de junho de 2009

A Hidra da Censura

A 22 de março último, o meu blog teve por título “A Volta da Censura”. Desde muito observo os diversos intentos de reimplantar a censura, ao arrepio da disposição constitucional do inciso IX do art. 5º :
“ – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”
Naquela oportunidade, chamara a atenção para o veio judiciário, pelo qual alguns juízes procuram reexumar a censura, através de disposições ad hoc em suas prolatadas sentenças.
Passada a euforia que cercara a supressão da censura, de que são paradigmáticas as declarações do então Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a hidra do obscurantismo ensaia o próprio retorno. Para tanto, se vale do transcurso de décadas, da pertinaz ignorância das vítimas, e de uma subjacente timorata mentalidade diante de manifestações da autoridade.
Uma coisa é o respeito à autoridade legal. Outra coisa, e bem diversa, é o cego e incoerente temor diante de eventuais expressões de prepotência, fundadas não no direito, mas na longa tradição da vis intimidatória do poder estatal.
Nesta semana, li na Folha, com estranhável espanto, a seguinte matéria: “Ministério proíbe ‘Senhoraantes das 20hs”.
Atônito se me deparam as seguintes linhas, que transcrevo:
O Ministério da Justiça deu ontem cinco dias úteis para a Globo deixar de exibir
‘Senhora do Destino’na sessão ‘Vale a Pena Ver de Novo’ (14h35). A Globo vai
recorrer da decisão.
“Em ato publicado no ‘Diário Oficial da União’, o diretor do departamento de
classificação indicativa do ministério, Daví Pires, cassou a classificação dada pela
própria Globo à novela de Aguinaldo Silva, de imprópria para menores de 10 anos.”

A Rede Globo teve uma longa convivência com a censura e, a despeito de seu relacionamento digamos especial com o regime militar, não haverá decerto lamentado o passamento dos censores, com o seu imprevisível discricionarismo. É de estarrecer, portanto, o seu servilismo, diante deste avatar da censura que se denomina “Departamento de Classificação Indicativa” do Ministério da Justiça.
Qual a autoridade constitucional desse departamento, que se arroga o direito de cassar classificações etárias estabelecidas pela emissora, e que dá cinco dias úteis para a Globo deixar de exibir os episódios da novela ‘Senhora do Destino’.
Na minha página de 22 de março, dizia : “não é de hoje que a censura ensaia o seu retorno ao nosso convívio. A censura, negação que é do conhecimento, é uma excrescência do autoritarismo e como tal deve ser tratada e enfrentada.”
A linguagem da classificação etária deve ser indicativa e não cominatória. Com a solércia dos burocratas, assistimos a uma transformação em que opinião passa a ser imposição. Pouco falta para que em breve, por cortesia do Senhor Tarso Genro, todos os programas televisivos (e por que não também cinematográficos) sejam precedidos daquela folha burocrática, que por tantos anos antes de 1988, anunciara ao público que ele podia ver aquele programa (ou filme), por força da autorização competente!
É de estarrecer que a Rede Globo se submeta a tais imposições administrativas, a ponto de enquadrar-se, segundo antecipa a notícia, em um modelo burocrático de recursos a autoridades do Ministério, não excluindo mesmo “apelar ao ministro da Justiça, Tarso Genro”.
Embora delas não tenha participado, não semelha lícito acreditar que a Globo se tenha esquecido das lutas que culminaram com a aprovação pelos constituintes do citado inciso IX do artigo 5º , assim como do artigo 220, e seus parágrafos 1º e 2º.
Será o temor inato à autoridade, mesmo no caso em que o Executivo, por motivos que talvez decorram de afirmações veleitárias, não trepide em montar instrumentos que calquem velhos disfarces e arremedos da censura, e que como tal devam ser expostos e neutralizados ?
Não terá acaso passado pelas mentes do departamento jurídico da Rede Globo que a questão é de mandado de segurança constitucional ? Não caberia talvez ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ?
Essa questão – tratada nas páginas internas de caderno dedicado a espetáculos –
é demasiado importante para ser entregue a rábulas ou despachantes administrativos.
Na verdade, ela tem menos a ver com a Senhora do Destino, do que com o destino a ser dado a mais uma tentativa de ressurreição da censura, e esta já ajaezada com os penduricalhos administrativos das cominações, dos prazos e dos simulacros de rituais.
Não se dizia antigamente que o preço da liberdade é a eterna vigilância ? Pois então, também será mais do que tempo de reafirmar-se a morte dessa filha dileta do autoritarismo, que é a censura.

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