sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Bento XVI e as relações com os judeus

Das Revistas: DER SPIEGEL (2.2.09)

Relações entre o Papado e o Judaismo. O Papel de Bento XVI

A delicada questão das relações entre a religião católica e o judaismo recebeu novo tratamento a partir do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII e concluído pelo seu sucessor Paulo VI. Essas relações, cuja melhoria muito se deve à especial atenção dedicada pelo Papa João Paulo II, ora atravessam, por causa de decreto de Bento XVI, uma inesperada crise.
Como se há de compreender, esse relacionamento torna-se ainda mais sensível se visto em um contexto alemão. Em decorrência disso, a revista semanal Der Spiegel dedicou a matéria de capa ao atual Pontífice, a sua responsabilidade na eclosão da crise, e a avaliação histórica da difícil relação entre católicos e judeus.
No presente artigo, me utilizarei, portanto, como fonte principal do texto do Spiegel. Assinale-se, contudo, que, por uma estranha omissão, os articulistas do semanário alemão se reportam apenas incidentalmente a Angelo Roncalli, que se tornaria o Santo Padre João XXIII, cognominado o Papa do Concílio (transcorreu a 25 de janeiro último o cinqüentenário do Anúncio pontifício do Concilio Ecumênico aos Cardeais na Basílica de São Paulo fuori mura). As referências, por conseguinte, ao Beato Papa Roncalli são de minha responsabilidade.
A suposta responsabilidade dos judeus na morte de Jesus, que lhes é atribuída já pelo Apóstolo Paulo, tornou difíceis as relações entre a Cristandade e os hebreus. Sofreram eles muitas perseguições que, obviamente, não se originaram na maior parte dos casos do Vaticano. No momento mais sombrio de sua história, durante o Holocausto, resultado da demência de Hitler e dos nazistas, muitos bispos, sacerdotes e leigos católicos se empenharam em salvar vidas dos irmãos hebreus. Nesse sentido, o bispo Roncalli, então delegado apostólico em Constantinopla, muito se esforçou em salvar os judeus ameaçados em sua área de jurisdição.
Quanto ao papel desempenhado pelo Papa Pio XII, e a controvérsia relativa ao seu suposto silêncio na questão, somente o exame da documentação vaticana esclarecerá no futuro, quando ampla e irrestrista investigação for autorizada, se procedem ou não as censuras dirigidas contra Papa Pacelli, acirradas a partir de 1963, com a peça do dramaturgo Rolf Hochhuth “O Vigário”.
Com a sua atitude ecumênica, o bispo Angelo Roncalli iniciaria o árduo trabalho de reaproximação não só com as comunidades judaicas, senão com as outras comunidades cristãs, seja a ortodoxa (cisma do século XI), seja a protestante, com a reforma de Lutero e outros (no final da segunda década do século XVI). Em sua famosa alocução de abertura do Concílio, em 11 de outubro de 1962, o Papa João XXIII apontou para os padres conciliares a vocacão ecumênica do Concílio, declarando passada a época das condenações. Nesse sentido, a declaração conciliar “Nostra aetate”, promulgada em 1965 já sob o seguinte pontificado, inocenta os judeus de responsabilidade pela morte de Jesus na cruz.
Para o trabalho de reaproximação entre catolicismo e judaismo, muito contribuíu o Papa João Paulo II, que, em março de 2000, pediu aos judeus o perdão pelo sofrimento que lhes fora infligido no passado pela Igreja.
A melhoria das relações entre católicos e judeus sofreu sério abalo pela decisão unilateral do Papa Bento XVI de cancelar a excomunhão pronunciada por Papa Wojtyla, em janeiro de 1988, de quatro bispos da Irmandade de Pio (ligados ao cisma do bispo Lefebvre). Apesar de a determinação de Papa Ratzinger de receber de volta no seio da Igreja os ultra-conservadores haja provocado espanto e indignação dentro e fora do Vaticano, tal constituía uma iniciativa que dizia respeito unicamente aos católicos.
Houve, no entanto, uma exceção, que acarretou consequências muito além dos muros leoninos e da comunidade católica lato sensu. Dentre os quatro bispos, está o inglês Richard Williamson, que há pouco declarou à televisão sueca que “nenhum judeu morreu em câmara de gás”. O prelado nega o Holocausto, afirmando que ao invés de seis milhões de mortes, o extermínio se terá restringido a trezentos ou quatrocentos mil judeus.
Segundo sublinha Der Spiegel, o escândalo decorrente desse gesto solitário e possivelmente irrefletido de Bento XVI redespertou em todo mundo suspeitas de que a Igreja Católica não abandonara em realidade o seu velho anti-semitismo. Dessarte, o Papa teria recolocado em questão a obra de reconciliação feita por seu imediato predecessor João Paulo II, e levantado junto a seus próprio fiéis ‘o temor de que o Papa alemão possa ser um Papa da Restauração, e que deseje reconduzir a Igreja à torre de marfim do dogma teológico’.
Forte foi a reação judaica, como, de resto, seria de esperar. O Conselho Superior dos Rabinos suspendeu de imediato o diálogo inter-religioso com a Santa Sé. Jizchak Cohen, Ministro israelense responsável pelos Assuntos Religiosos recomendou que ‘sejam rompidos por completo os laços com uma Corporação em que existam membros negadores do Holocausto e anti-semitas’, com o que se referia às relações diplomáticas com o Vaticano. E o rabino Israel Meir Lau, sobrevivente de Buchenwald, e ex-rabino superior de Israel, se perguntou: “Como pode um tal negador receber a proteção e a reabilitação do Líder da Igreja Católica ?”
Essa questão igualmente desperta celeuma entre os católicos e como sublinha o artigo, sobretudo na Alemanha, a pátria de Joseph Ratzinger, o atual Pontífice. Nessas reações, o padre jesuíta Klaus Mertes, reitor da Igreja em memória dos vítimas do Nazismo, expressou o seu espanto acerca do bispo Williamson. Mas também sobre a decisão de Roma. “Pode ser que as razões não tenham sido comunicadas. Mas que razões podem ser estas, pelo amor de Deus ?”
Não obstante as reações vivazes e veementes, externadas em meios também leigos e políticos, o Papa não pareceu de início haver sentido a profundidade do sentimento contrário à sua medida. Segundo familiares seus, Bento XVI não estaria preocupado com a repercussão da anulação da excomunhão dos bispos. Mesmo a sua menção, na alocução da audiência pública da quarta-feira, da Schoa e da própria visita a Auschwitz, e de sua completa solidariedade com ‘nossos irmãos da primeira Aliança’, e sua condenação do ‘ imprevisível poder do Mal’, não teve a necessária e espontânea força de um improviso, fora do manuscrito preparado pela Cúria.
Esse comportamento do Papa suscita indagações acerca de sua maneira de decidir. Homem da Igreja e não do século, Bento XVI se ressente de certa falta de sensibilidade quanto às eventuais consequências de suas iniciativas. Um exemplo inicial dessa deficiência de percepção política pode ser apontado no seu discurso de Regensburg, em 2006, quando citou de um esquecido imperador bizantino a frase “Mostra-me o que Maomé trouxe de novo, e encontrarás apenas cousas ruins e inumanas”. A previsível reação muçulmana se estendeu de Casablanca a Jacarta, e deu muito trabalho à diplomacia vaticana no intento de contextualizar as citações do Papa (e de tirar-lhes a aparência de um vezo anti-islamista).
Também de questionável habilidade diplomática foi a iniciativa de batizar um convertido e ex-muçulmano na basílica de São Pedro, na noite pascal de 2008. Para tanto, o Papa acolhera sugestão do movimento leigo italiano, de tendência conservadora, ‘Comunhão e Liberação’. Em função deste batismo, houve diversas reações islamistas, e até do próprio Osama ben Laden, com a acusação de uma ‘nova cruzada contra o Islam’.
Não é segredo o viés conservador do Papa – foi por muitos anos o Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé ( o ex- Santo Ofício ) e, nessa qualidade, esteve empenhado em diversas ações contra teólogos como Leonardo Boff e Edward Schillebeeckx. Criticou decisões do Concilio Ecumênico (como a abolição da missa em latim, no rito tridentino) e tem demonstrado muita admiração por Pio XII, que é, para muitos, o ícone dos opositores das reformas introduzidas pelo Concílio. Sem embargo da resistência que encontra em diversos meios e em especial no judaismo, o Papa tem manifestado o respectivo apoio ao processo de beatificação de seu antecessor Eugenio Pacelli (1939-1958).
O processo de decisão do Papa, além da influência de um conservadorismo acrescido, se tem pautado, pelo menos em algumas ocasiões, por falta de consulta aos órgãos competentes da Cúria romana. Esse relativo isolamento pontifício pode acarretar sérios problemas para a Igreja. A tal propósito, a maneira voluntarista e a ausência de verificação prévia no que respeita às implicações da anulação das excomunhões dos quatro bispos mostra claramente as lacunas e os riscos a que se expõe um approach dessa natureza de parte do Sucessor de Pedro.
É decerto questionável o intento de anular este cisma, e trazer de volta ao aprisco cerca de 0,02% do rebanho católico. Convenha-se que importou em sacrifício desmesurado, criando a acima descrita situação para a Igreja. Mais preocupam, entretanto, as inúmeras falhas do processo decisório. O Decreto para Anulação da Excomunhão foi decidido por Bento XVI sem consultar os órgãos para tanto competentes da Cúria, a saber o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a própria Congregação dos Bispos. O Prefeito desta Congregação, o Cardeal Giovanni Battista Re, tomou conhecimento do decreto a posteriori, a fim de referendá-lo. Re, na oportunidade, verberou o erro que atribuiu ao Cardeal colombiano Castrillon. Com efeito, a iniciativa teria partido do citado Cardeal, ligado a meios tradicionalistas, próximos ao Pontífice.

Reação da Chanceler Angela Merkel.

Segundo informações retransmitidas pela imprensa brasileira, a Primeira Ministra da Alemanha se manifestou de forma inequívoca no sentido de que o bispo Richard Williamson se retratasse, não se limitando a uma simples afirmação de que lamentava o transtorno que as suas declarações pudessem haver causado. Tal iniciativa de Angela Merkel, em assunto de foro eclesial, traduzia sem dúvida a sua inquietude com os eventuais reflexos que poderia ter para o seu país um retrocesso no relacionamento entre católicos e judeus, durante o pontificado de um Papa bávaro.
Segundo noticiado, seguiu-se comunicação telefônica entre o Santo Padre e a Chanceler alemã. Nada transpirou do telefonema, salvo que Merkel reiterara as respectivas inquietações e o Papa significara a sua opinião na matéria. Os órgãos de imprensa acentuaram a cordialidade do diálogo entre o Chefe da Igreja e a luterana, chefe do governo alemão.
Nos dias subsequentes, a instância vaticana competente comunicou oficialmente ao bispo Williamson que se deseja voltar ao seio da Igreja deverá retratar-se de sua negação do Holocausto.
Forçoso será reconhecer que estamos no domínio da especulação, se porventura alvitrarmos que o endurecimento da posição vaticana no que tange ao bispo Williamson terá sido consequência da intervenção da Chanceler germânica.

E a Resposta do Papa diante da Crise

Em iniciativa que surpreendeu a muitos, a diplomacia vaticana logrou organizar visita de líderes de organizações judaicas norte-americanas ao Sumo Pontífice. Em audiência especial, realizada ontem, doze de fevereiro, ouviram os participantes, recebidos na Sala Clementina, discurso de Bento XVI em que afirmou: “qualquer negação ou minimização desse terrível crime (o Holocausto) é intolerável”. A declaração foi considerada a mais forte condenação à negação do Holocausto feita até agora pelo Papa.
Nessa oportunidade, o Santo Padre anunciou que está planejando visitar Israel, o que segundo a Cúria Romana deverá ocorrer em maio próximo. Esta é a segunda visita de um Pontífice à Terra Santa, depois da ida de João Paulo II em 2000. Se realizada nesse curto prazo, será nova indicação do compromisso do Papa na manutenção de boas relações entre católicos e judeus.
Nesses termos, o entendimento tenderia a normalizar-se, com a aceitação pela maioria das organizações judaicas das manifestações pontifícias quanto à sua dissociação das posições dos negacionistas. Como se afigura óbvio, existem nos dois campos elementos mais radicais que hão de procurar instrumentalizar a crise para atender aos próprios fins. Não deverão, no entanto, impedir a normalização do relacionamento, a menos que surja algum outro desenvolvimento que venha a favorecê-los no futuro.
É de esperar-se que Bento XVI haja aprendido a sua lição. Terá ele presente que todo o trabalho para superar a crise e corrigir a situação sobreveniente não teria sido necessário, caso tivessem sido tomadas as providências de rotina ao ensejo da feitura do decreto de anulação da excomunhão dos bispos ordenados por Monsenhor Lefebvre.
A consulta aos órgãos competentes e as indispensáveis verificações da Cúria podem atrasar a publicação de decreto, e assim desagradar aos anseios dos fâmulos. Asseguram, todavia, uma alternativa que se afigura preferível: não cometer erros por desnecessária pressa, ou fazê-los, mas com plena consciência dos riscos assumidos .

Um comentário:

Mauro disse...

Ótimo artigo, contudo desnecessário. Claramente é impossível que o episódio seja um resultado de um erro. Estamos falando de entidades/pessoas que gozam da infalibilidade divina. Certamente há uma estratégia por trás, soprada pelo Espírito Santo e além da compreensão humana.