quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Guerra Civil chega a Damasco



      Das manifestações pacíficas, a que o governo respondera com a repressão e as primeiras vítimas, a revolta na Síria, outro avatar da Primavera Árabe, se foi tornando violenta. Do Sul em Deraa, a insatisfação popular se estendeu  para todo o país.
     Bashar al-Assad pensara, a princípio, que com falsas promessas poderia engodar a população. Como a tais supostos compromissos do Raís não se seguiu nenhuma mudança, o pacifismo inicial foi cedendo seu lugar a surda insatisfação, que não tardaria em buscar a via armada para tentar arrancar do presidente uma real disposição para a abertura democrática.
     Ao invés da paz imposta pelos serviços secretos e pelo braço armado militar, de que a divisão comandada pelo irmão Maher constituía o principal e temido deterrente, o regime estabelecido pelo pai Hafez al-Assad, em 1970, a quem o oftalmologista Bashar sucedera em 2000,  consolidara o domínio da minoria alauíta (uma dissidência da seita xiita), em um modus vivendi, em que conviviam a maioria sunita e grande variedade de religiões, inclusive cristãos.
     O traço laico do regime dos al-Assad constitui o seu traço mais favorável.   Ao invés da intolerância que tristemente se tornara a regra no mundo árabe e muçulmano, com os incontáveis episódios das perseguições às minorias (de que os ataques aos cristãos caldaicos do Iraque e aos coptas no Egito são exemplo) havia na antiga terra da passagem a tolerância por princípio e o laicismo por base.
     Será nesta tecla que bateram com insistência os defensores do regime, inclusive na mídia ocidental, que representaria o inestimável penhor do governo do clã Assad.
     Se tal laço laico constituía aspecto elogiável a ser imitado alhures, o conjunto da população submetida ao despotismo alauíta passara, progressivamente, a considerar que a sociedade síria estava pagando demasiado caro pela suposta paz entre as diversas denominações religiosas.
     Como em outras partes, o povo desejava livrar-se do cruel arbítrio do poder absoluto, e do mando imposto pelo discricionarismo e as câmaras de tortura dos diversos serviços armados.
     O itinerário que levou ao atual impasse foi crescendo no ritmo a princípio desconcertante das revoluções. Assim, do incipiente levante se passou aos motins de que o crescente descontentamento do povo constituíu o adubo na aparência inexgotável. O fementido Assad esbanjou em mentiras o seu capital, perdendo irremediavelmente a credibilidade junto aos diversos segmentos demográficos.
     A hoje guerra civil não chegou aos presentes excessos por acaso. Para infelicidade do tecido social, as etapas não foram queimadas, e a desagregação dos laços e do sentido de uma paz que não seja a dos cemitérios não surgiu da noite para o dia.
      Estão aí os dezenoves meses da revolução e os mais de vinte mil mortos que ela foi deixando pelo caminho, para mostrar a imensidade da falácia.
       Bashar hoje não venceria mais nenhuma eleição, e o seu império se baseia no fuzil, um instrumento de que é sabida a volubilidade e a pouca flexibilidade. No exterior, aqueles que o apóiam são regime ditatoriais ou falsas democracias, em que a lei constitui arrimo inconfiável, diante da palavra do homem forte.
       A Rússia, de gospodin Vladimir V. Putin, tem impedido qualquer ação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no que a apóia outro regime autoritãrio, a RPC. A ajuda ocidental tem sido tíbia, e parece mais temer a repetição afegã, com outro foco de militante jihadismo, do que atender à conveniência de armar um movimento democrático popular, que é autêntico rebento da Primavera árabe.
       Os aliados de Bashar se estendem ao regime dos ayatollahs, de que Damasco constitui um elo vital na sua luta contra Israel. Com efeito, o Hezbollah na Síria e o Hamas, na Palestina, movimentos diversos mas que contam com o apoio de Teerã, se veriam enfraquecidos e talvez isolados se o regime dos Assad caísse.
       Nessa guerra por procuração, a participação dos sunitas da Arábia Saudita e do Quatar já terá sido mais pró-ativa, sofrendo hoje de alegadas dúvidas quanto ás vantagens comparativas de armar ou não o Exército Livre da Síria.
        Outro fator, que não poderia ser desconsiderado, é a iminência da eleição presidencial nos Estados Unidos. Antes dos comícios da terça-feira, seis de novembro, é pouco crível qualquer mudança na postura estadunidense (e por conseguinte do Ocidente). Por ora, a norma é esperar e ver
(wait and see).
        Sem embargo, como eventos naturais, as revoluções têm a sua própria dinâmica e atendem ás próprias leis.  À volta da Síria, crescem os ajuntamentos de refugiados, que repontam sobretudo na Turquia de Erdogan, progressivamente afastada de Bashar, na medida em que se descobre envolvida em problemas alheios que têm a capacidade de tornar-se igualmente internos, exacerbando oposições e criando o escândalo dos acampamentos sem lei e sem higiene.
       Dessarte, sem atentar para as conveniências de outrem, eis  a revolução síria que não mais bate às portas da bíblica Damasco, porque já nela se encontra. Nâo são mais incidentes atribuíveis a caprichos terroristas, mas uma outra realidade, mais incômoda e mais presente. 
      Damasco, a capital dos Assad, não é mais o reduto asséptico, em que se ignora a tragédia síria. De maneira irrespondível os problemas se transportaram também para a capital - e de mala e cuia - trazendo para a povoação civil - aquela que paga a conta ao cabo - todas as cobranças, todos os padecimentos e todas as incertezas dos processos armados de disputa do poder.
      Para quem se pautou pela arrogância, a violência, a intimidação dos shabihas (as milícias subvencionadas pelo poder alauíta), a distância do front de repente encolheu dramaticamente. Anibal não bate mais às portas da cidadela, pois em verdade já ingressou nas suas vias, becos e bairros.
      De uma certa forma, o processo parece aproximar-se de suas derradeiras consequências.
      É o que se verá nos próximos dias e talvez semanas, sob o olhar na aparência negligente dos possíveis aliados do povo sírio.

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