A revolução democrática como vasta mancha de óleo se estende pela nação árabe.Embora, em nenhum estado, ela possa declarar-se cristalizada em forma estável, sua progressão acentua-se em alguns, em outros a agitação persiste e, por fim, em muitos deles, há sintomas que indicam o contágio.
Assim, em breve sínopse, na Tunísia e no Egito, a revolução avança em meio a resistências, na Líbia a intervenção estrangeira buscar ajudar a coalizão rebelde, enquanto Kadaffi não dá sinais de saída voluntária. No Iêmen o ditador Ali Abdullah Saleh se apega ao poder com a tenacidade de um polvo a despeito da larga oposição popular e da adesão de comandantes militares. No Bahrein o rei sunita da maioria xiita parte para a repressão com o apoio de contingente mandado pelo inquieto soberano da Arábia Saudita. Já no Magreb, a insatisfação se manifesta em auto-imolação na Mauritânia, em distúrbios na Argélia de Abdelaziz Bouteflika, em manifestações pró-democracia no Marrocos do rei Mohamed VI, em outras manifestações e passeatas na Jordânia do rei Abdulah II. Por ora, há expectativa e pouco mais nos restantes pequenos estados do Golfo.
Tenha-se presente que a ideia democrática – lançada pelo sacrifício de Mohamed Bouazizi, mártir da revolução tunisiana – se choca contra as muralhas da autocracia, estendida em todo o mundo árabe, com a única exceção do conturbado Líbano. Essa longa cultura do arrocho ou da supressão da liberdade se acha demasiado entranhada para que o eventual trabalho de extirpá-la seja tarefa simples. Através da longa noite da desinformação, os diversos ditadores, amiúde sob o disfarce das democracias adjetivadas, logram manter o controle da população, partilhando ou não o poder com o exército, que constituirá sempre, e por óbvias razões, a casta privilegiada.
O processo revolucionário está encetado na Tunísia e no Egito, posto que neste último subsistam grandes dúvidas quanto à criatura que o movimento da praça Tahrir há de gestar. Nos outros, o prognóstico está em aberto, por mais que a sorte do tirano iemenita semelhe ter os dias contados.
A grande surpresa – dentre o espanto geral no rastilho da centelha libertária na terra que dela parecia a negação – se encontra na Síria, que há cerca de quarenta anos é dominada pela família al-Assad. No modelo republicano-dinástico instituído pela Coreia do Norte, a República Síria, instaurada a ditadura pelo general Hafez al-Assad, ali implantou-se o terror controlado, a cargo da minoria alauíta, que domina o exército, que por sua vez domina o país. Na década de oitenta, a supressão com milhares de mortes da movimentacao fundamentalista sinalizou para os eventuais céticos o que teriam de enfrentar, caso se dispusessem a contestar o arbítrio.
A sucessão de Hafez al-Assad cairia não sob o herdeiro preparado pelo ditador. As Parcas contrariaram o seu propósito. Depois de um início claudicante, Bashar al-Assad parecia haver aprendido o mister de acordo com a cartilha da dinastia alauíta. Por causa do assassínio encomendado do ex- primeiro ministro libanês, Rafik Hariri, em 2005, de que pesadas suspeitas recaíram no regime sírio, al-Assad foi forçado a retirar as tropas de ocupação do vale da Bekaa, no interior do Líbano, terminando assim extenso protetorado que pesara sobre o débil regime democrático da multiétnica nação libanesa.
Apesar dos recuos, a Siria continuou a ser a potência regional naquela área do mundo árabe. O regime nunca alimentou dúvidas quanto à maneira com que trataria o dissenso. Nesse campo, a ditadura, por seus braços longos e especial brutalidade, nunca foi omissa na sufocação de qualquer aceno democrático.
A rebelião de Daraa – cidade ao sul da Síria, próxima da fronteira com a Jordânia – pode ser considerada como movimento do desespero, inequívoca atestação da força do sopro democrático que o ícone da revolução lançara nesse mundo de masmorras, torturadores e carrascos. O povo de Daraa, infiltrado segundo al-Assad por agitadores alienígenas (deveria ser estudado esse vezo dos ditadores de atribuir o novo e o revolucionário aos estrangeiros), além de manifestar-se e depois queimar os prédios do poder, teima em continuar a sair às ruas,ousando assim desmentir a localização e insignificância da contestação.
O chienlit [1]de Daraa – e sua eventual propagação a outras cidades – terá induzido o ditador al-Assad a um repensamento. Para evitar que a revolta se propague, prometeu reformas, v.g., o fim do estado de emergência (em vigor há 48 anos), aumento de salários do funcionalismo, criação de novos postos de trabalho e de comissão ‘para investigar a repressão em Daraa’. Havendo sido, inclusive, aventada a adoção do multipartidarismo (hoje o Baath é partido único) e garantias à liberdade de imprensa, compreende-se a desconfiança da opinião pública.
No foco do levante houve pelo menos 44 mortos. Como não há menção de livramento dos prisioneiros políticos – em torno de uma centena por causa de tais acontecimentos -, a multidão que voltou às ruas de Daraa reclama a sua libertação. No momento, as forças de segurança, com o exército à frente, recuaram,o que é um sinal positivo, posto que condicional.
Há expectativa de novas manifestações e novas exigências, com grandes aglomerações previstas em Daraa. Em Damasco e em outras cidades, reina a calma, não se sabe se a do conformismo, ou aquela que precede às borrascas.
( Fonte: O Globo )
[1] Chienlit, palavra do francês arcaico, que indica motim, rebelião, foi empregada de forma depreciativa pelo Presidente Charles de Gaulle, a respeito dos movimentos estudantis e populares de 1968, que quase derrubaram o regime da V República.
sexta-feira, 25 de março de 2011
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