sábado, 2 de agosto de 2008

Dos Jornais - III

O GLOBO (02.08.08)

Jogos de Cartas Marcadas (pág. 44)

O correspondente Gilberto Scofield Jr. escreve a respeito da entrevista do presidente da China 'para melhorar a imagem do país'. O presidente Hu Jintao concedeu entrevista a 26 jornalistas (um brasileiro e nenhum ocidental). As perguntas foram previamente submetidas e os perguntadores escolhidos. Segundo Ernesto Paglia, da TV Globo, apenas seis pessoas fizeram perguntas, todas entre o ingênuo e o filosófico.

Comentário de observador. A República Popular da China muito desejou sediar as Olimpíadas e nesse sentido governo e povo chinês fazem um esforço considerável. O calcanhar de Aquiles está no fato de a RPC ser um regime híbrido. O seu espetacular desenvolvimento econômico decorreu da liderança de Deng Xiaoping (na década de oitenta), quando o marxismo foi abandonado no campo da economia, com a correspondente abertura ao capitalismo internacional. No entanto, esta opção econômica capitalista não determinou abertura no domínio político, permanecendo o monopólio do partido comunista chinês do poder político. Surgiu assim uma espécie de Frankenstein, em que existe uma ditadura política do PCC (se bem que a ideologia comunista para fins práticos foi transformada em uma ideologia de manutenção do poder) e uma democracia (ou abertura) capitalista no mercado. Assim, o poder político na China continua em mãos do PCC, e reveste necessariamente um aspecto burocrático e não-carismático. O atual detentor é o Presidente Hu Jintao e a maneira com que foi conduzida a chamada ‘entrevista’ à imprensa internacional é um retrato da atitude da hierarquia perante a mídia. Como toda ditadura, tem um temor pronunciado da liberdade de imprensa e de outros sintomas democráticos. Nesse sentido, tudo faz para controlar a imprensa, para tanto utilizando todos os métodos disponíveis para um regime dito ‘forte’. Para quem tem tantos esqueletos no armário ( com o Tibete à frente), essa postura se não é obviamente aceitável, é inteligível. Parece-me importante assinalar que um dos primeiros sinais de alerta em termos da progressão autoritária se acha na relação do poder estatal com a imprensa. Assim, como à democracia repugnam os adjetivos, também o regime autoritário experimenta uma rejeição violenta e incontrolável diante das tentativas de inserção dentro de sua área de influência de uma imprensa realmente livre e não-caudatária.
Infelizmente a história política da China poderia ter sido bastante diversa se Deng Xiaoping tivesse aceito em 1989 a sugestão do então Primeiro Secretário do Partido Comunista Chinês, Zhao Ziyang. Não tendo o enfoque repressivo da ala conservadora, representada na estrutura de governo pelo Primeiro Ministro Li Peng, Zhao preconizou como soluções para a crise de 1988/9 ‘democracia e a primazia (rule) da Lei’. Marxista e um membro brilhante do partido, Zhao se chocou nessa oportunidade com o ‘líder máximo’ Deng, e pagaria alto preço pela sua coragem e retidão. Afastado de todos os cargos, ficou por dezesseis anos (até sua morte em janeiro de 2005) em estrito regime de prisão domiciliar. Como assinala Perry Link, em artigo em ‘The New York Review’, essa medida governamental tinha menos a intenção de punir a Zhao do que a de evitar qualquer possível ressurgência de sua popularidade no povo chinês. Na verdade, segundo mostra o livro “ Conversações com o prisioneiro Zhao Ziyang” (publicado em 2006, em Hongkong e banido no resto da China), a sua proposta para a abertura democrática era conseqüência também de pensamento pragmático. A própria intuição democrática evoluiria para a conclusão de que uma economia de mercado sob o sistema do partído único inevitavelmente leva à corrupção. Por outro lado, Zhao vira na democratização a resposta para a corrupção, bem como a circunstância de que a incidência da corrupção, como questão pública podia ser usada para estimular o interesse popular na construção de instituições democráticas.
Verifica-se, assim, que no fim de contas são fundados os temores de Hu Jintao e dos demais hierarcas chineses. Todo ‘regime forte’ é uma vítima da síndrome do pânico, por bem conhecer a intrínseca fraqueza de quem depende da intimidação, da censura, e de todos os meios conexos à violência institucional para manter-se no poder.

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