sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Erro de Cameron (II)


                              

         Quando um erro nacional se desprende de seu infeliz criador, não vá este pensar que breve lhe há de surgir o momento em que o pesadelo - por ele mesmo fabricado - se vá desvanecer na manhã seguinte, como sói acontecer com outros flagelos da noite em que o desgraçado, além de suar como um porco, se revira nos lençóis, perseguido por tantas ânsias e ignotos monstros.
            Pois como tentar negar que o pesadelo será sempre criatura da noite? Quando nela de repente se desata o fio da consciência, e a vítima se debate em angusto, sufocante, claustrofóbico poço, gélidas bagas de suor abundante lhe molham ao parecer os panos que o envolvem. E o frio que tão profundo sente,  ao nele enrolar-se e minaz enxarcar-lhe os lençóis, enquanto lhe parece surgir à volta colante criatura, a ponto de achar-se sufocado pelo que acredita, na noturna demência, como se fora um quase réptil,  que rasteja no transe de respiração descontrolada.
             A noite é tão companheira da enxerga do miserável, quanto do luxuoso leito de um ser, que por existenciais favores, se creia superior ao comum dos mortais. E quando cai de chofre, trazendo aos sedosos lençóis e à maciez do fino edredon a respiração opressa, que nele se largará como colante, tão fria quanto íntima companheira, de infeliz que se extrema em meio a temores insondáveis e os sobressaltos que lhe reserva sorte tão madrasta quanto o pesadelo que, dizem, se desprende das solitárias tumbas daqueles que dormem profundamente.    
              A consciência do erro, que solitária surge, não evitará que ao infeliz visite respiração ansiosa, extremada, da vítima de alguma cruel maldição. E a autoridade, que, de repente, os páramos confronta em vez da glória benfazeja, será ela acaso esquecida dos infelizes, que ao igual da alta personalidade - que viu cortada pela punição divina sorte que pensara fosse sua companheira de jornada - e a buscara nos olvidados terrenos baldios de loucos devaneios, que a Fortuna, deusa tão inconstante quanto pouco confiável, lhe vem depressa golpear, com a força e peso que os tolos castiga.
             Eis que, segundo a própria natureza, eles a provocam e incitam. Tanto a companheira da respiração opressa, quanto aquela da angústia, se confundem no espaço insone, que pesado recai sobre o infeliz, passageiro este sem volta de desastre por ele anunciado, rufando os tambores e sob o toque atrevido dos clarins, que hoje orquestra algum taumaturgo, e que no silêncio da alcova se transmuta em sons estranhos, filhos de noites sem lua, que investem contra os infelizes porventura ouvintes em estridente escárnio, que sobre o fracasso fabricam  grito de exausta fúria, pejado de um fundo deboche, que a tudo parece levar de roldão.
               Os soníferos já não fazem efeito. Malgrado tudo, as imagens noturnas continuam a picar-lhe, lancetá-lo com doestos, injúrias, gracejos e mofas. A ironia, que o confunde e menospreza, ele sente feri-lo com força. Mas será o doesto, que só ele escuta e entende, que fundo sente atingir-lhe a própria imagem, que a cada vez, como nas visitas nervosas de Dorian Gray ao próprio retrato, verá com a veracidade filha daquela realidade que o outro pensara ocultar.
2.            O que hoje existe  é a vitória da mediocridade, e do nostálgico regressismo, de uma parte,  e da tola ambição de um punhado de políticos de segunda ordem, que sem nada entender do fenômeno, e  do próprio erro de David Cameron,  correm para abocanhar o pedaço de carne que a displicência do Primeiro Ministro lhes jogou com agressiva e leviana falta de percepção dos interesses da velha Britannia.
                O que a realidade do presente nos mostra, confunde e machuca não só quem acredita no projeto da Comunidade Europeia, depois de tantas guerras intestinas, de tantas carnificinas, como a da Grande Guerra, que dizimou gerações, e preparou, com surpreendente zelo, o Segundo Ato do Armageddon, que seria a revanche da Alemanha, e que terminou em conflagração mundial, que dispensa maiores apresentações.
                   Ao cabo de tais guerras mundiais, além do mundo da chamada belle époque, e do império austríaco, que luzira durante séculos, houve o Holocausto com a insânia do nazismo, a que se seguiria no pós-guerra a criação das Nações Unidas - que sucedeu à Liga das Nações -, a descolonização e a formação do Mercado Comum, cujo núcleo inicial foi a comunidade do carvão e do aço, unindo pela forja da economia a Alemanha Ocidental, a França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, a par da Itália.
                  O Reino Unido, a principio, não participou do processo europeu de formação do Mercado comum. Considerava-se grande potência, vencedora do nazismo, e pensava ter condições econômicas para enfrentar de igual para igual a Europa continental democrática.
                  Fundando-se em nostalgias dos séculos passados,  não tardaria muito em que Londres tentasse reverter o processo a que a principio desdenhara. Sem embargo, não contara com o crescimento do gaullismo, que superaria a IV República, que nem o grande Mendès-France pudera conter, e o general Charles de Gaulle, por conta da insurgência na Argélia, voltaria ao poder, e reconstituiria parte da ascendência francesa com a própria autoridade. 
                    O problema com o general é que por motivos políticos, ele se recusaria em suas famosas conferências de imprensa a admitir o Reino Unido, como parte da Comunidade Econômica Europeia.
              A elite política inglesa - seja, os trabalhistas, os conservadores e os liberais -  se convenceram de que precisava adentrar o organismo de Bruxelas, eis que os planos de uma associação dos países que tinham ficado de fora da CEE não tinham condição de abrir o mercado continental europeu para as indústrias inglesas.
                      Dessarte, somente depois da morte do General de Gaulle, no quarto final do século XX, o Reino Unido lograria entrar na CEE. Conservadores, Trabalhistas e mesmo Liberais se tornaram membros do Mercado Comum Europeu, com que se atendeu a velho sonho de estadistas de Sua Majestade.
                         É bem verdade que o saudosismo  do velho poder mundial do século XIX permanecia em alguns grupos nostálgicos da Inglaterra que detinha a maior frota do Planeta, e que  nos tempos da Rainha Vitória e de Eduardo VII tem a primazia nos mares.
                          A  Grande Guerra - que o estúpido belicismo do nazi-fascismo faria ser sucedida pela II Conflagração Mundial (com as consequências que bem conhecemos) - preparou o teatro europeu - após esfacelar o Império Austro-Húngaro - para a geral carnificina da Segunda Guerra Mundial.
                          Gritava aos céus, portanto, que o Velho Continente somente através da União alfandegária reuniria a força econômico-política necessária para vencer o desafio da nova Política mundial.
                           Sobrevive, contudo, na Inglaterra o orgulho imperial e o anelo de reviver a sua grandeza anterior, não através da Organização de Bruxelas, e sim pela tentativa de um vôo solo, em uma época na qual Britannia, se carregada de tradições, carece bastante do aporte de Middle-Europe.
                            É isso que explica o continuado esforço de um particularismo, dessa feita britânico, em  recuperar o poder de antanho, caminhando como dantes sozinha.
                            Esse sopitado desejo levaria Tony Blair a convocar e vencer um primeiro plebiscito, que pretendia restaurar a velha Inglaterra, e afastá-la da empresa européia de Bruxelas.
                              Por muito tempo, permaneceu dormente essa nostalgia - como se liberando-se do organismo de Bruxelas, o Reino Unido voltaria a ser o que era no século XIX...
                              Já dessa vez,  Blair mandou realizar o referendo como se houvesse razões bastante para justificar essa um tanto leviana brincadeira com forças retrógradas, sem maior peso na política de Westminster, mas que recorriam ao intento de trazer a grandeza imperial de volta. Por isso, o comprometimento de Tony Blair - pondo em risco a iniciativa da intelligentsia britânica - já me parece brincar com o desastre.
                             Apesar dos ataques que sofre,  Tony Blair vence mais essa  batalha. No entanto, a dúvida remanescente, ou melhor dizendo, o sentimento de culpa de parte do estamento inglês, levaria o seu distante sucessor  - e um político decerto sem o brilho deste seu antecessor - a cometer  erro histórico, ao abrir as portas da cidadela a um punhado de micro-partidos oportunistas, e a realizar, em pleno verão, mais um plebiscito sobre a saída da União Europeia. Abraçado pela velha geração, como deixar a Comunidade Europeia fosse uma atitude corajosa, que abriria não só as portas de Mammon, e da antiga opulência do Império..., esse plebiscito do Brexit (Britain exit)  reanimou a velhos aposentados e a antigos nostálgicos de Império em que o sol jamais se punha... Além da pobre deputada trabalhista, morta por um velho celerado,  essa consulta aos súditos de Sua Majestade, apresentou esquálida maioria pró-nostalgia.
                               Diante do fiasco por ele causado - e nesse momento não me esquece a sua pose altaneira a passar depressa pelas salas da direção da Comunidade Europeia, como se o andar estugado fosse para evitar qualquer contato maior com algum europeu... Dentre os grandes nomes entre MPs do Partido Conservador, do Labour e do Partido Liberal não me consta que tivessem tão pouco apreço ao contato com os seus irmãos europeus, como pude observar, na Tevê continental, aquela pressa, aquela aloofness[1] do sisudo Tory David Cameron, atravessando com passos largos as grandes salas do Organismo diretor de Bruxelas,  como quem deseja evitar qualquer contato com algum colega representante de outro país europeu no centro da governança da Comunidade Européia...
                               Não só para entender um assunto, e ainda mais uma questão de sumo  interesse de Sua Majestade Britânica, a falta de naturalidade e de, na verdade, proximidade com representantes não da potência britânica, mas de outros países europeus - e são muitos hoje os que compõem a C.E.-  não pode conduzir a essa aloofness, a que me reporto na nota de pé-de-página.
                               Não creio, por conseguinte, que o erro de David Cameron, erro que lhe valeu a perda da direção do gabinete de Sua Majestade, haja sido voluntário, se tivesse ele a intenção de afastar o Reino Unido da Comunidade Europeia. Sem embargo, tal erro, se não foi voluntário, terá sido algo do domínio do Dr Sigmund Freud.
                               O desconforto com a vitória do Brexit - com maioria bastante débil para determinar tal decisão com tais consequências  -  persiste, pois sobre ela paira a suspeita da falta de legitimidade. Em outras palavras,  um plebiscito feito às carreiras e aplicado em alguma semana do verão inglês, tratando de questão que foi objeto de lutas políticas memoráveis,  é aprovado com muito escassa sensação de legitimidade.
                                  Sem falar no lamentável erro de David Cameron - que lhe custou a direção do gabinete de Sua Majestade - os principais personagens do Brexit nos transmitem aquela velha dor no pescoço que Lord Altrincham sentia quando ouvia discursar a recém-coroada Rainha Elizabeth II...
                                Com efeito, os irmãos Johnson nos dão uma impressão de imatura ânsia de poder - ambos se dizem partidários do Brexit, embora Boris o mais conhecido deles tenha chegado a gabar-se de que poderia fazer tanto  documento favorável ao Bréxit quanto um contrário... Essa afirmação de causídico - que parece favorecer mais a retórica do próprio estilo, do que o que realmente está em jogo:  o Brexit corresponde ao interesse inglês?
                                   Por outro lado, a atmosfera de pouca seriedade é composta pela grande amiga de Donald Trump - Theresa May,  que se debate com os irmãos Johnson, seus opositores intrapartidários  na bancada dos Tories,  e que não semelha personagem que seja do porte da Thatcher.   
                                     Por isso, chega a ser contristadora a atitude dos ingleses - e mormente das donas de casa - que temerosas de ficarem sem comida, e de reeditarem  os negros tempos de seus antepassados recentes, quando da Blitz nazista sobre Londres - passaram a estocar comida.
                                      Essa atitude mostra a irresponsabilidade dos conservadores que desejam logo tornar efetiva a saída da Comunidade Européia.  Parecem, contudo, reeditar os tempos de seus avós e pais, quando a Blitz aérea germânica bombardeou  a Inglaterra. Nas condições precárias de então, as donas de casa inglesas trataram de montar estoques alimentícios em suas residências.
                                     Com a fraca Theresa May - que mais pensa manter-se na liderança do que criar condições para que o Reino Unido não fique desabastecido pelo insano capricho do Brexit  - o observador da antiga grande potência inglesa atravessa um período difícil se quiser determinar se a velha Inglaterra - pelo capricho do Brexit e a fraqueza de sua liderança - terá condições de implantar a fantasia do Brexit, ou se esta comédia de erros, determinada pela fraqueza da atual liderança - a par da ambiguidade do líder trabalhista que, mesmo contrariando boa parte dos deputados do Labour, parece preferir o silêncio da falta de comprometimento, a uma postura mais incisiva.
                                       A fraqueza - ou pelo menos o pendor ao não-engajamento - parece ser a tônica entre os líderes que se acredita pró-CEE.  Com líderes desse jaez, que acham mais prudente o silêncio do não-comprometimento, enquanto outros pensam trazer de volta, em passes de mágica retórica, a Velha Inglaterra em cujo Império o Sol jamais se punha.
                                        O que será interessante verificar será a atitude do Povo inglês e notadamente suas donas de casa, quando os seus sonhos nostálgicos de grandeza forem cortados por super-mercados com prateleiras vazias, e por outros problemas conexos de falta de estoque alimentício.
                                        Não sei se valerá a pena para Theresa May consultar Nicolás Maduro, o ditador venezuelano, para que lhe dê algumas dicas quando ao desabastecimento,  eis que esse senhor convive por alguns anos com a falta generalizada para o seu Povo de artigos comestíveis, y otras cositas más...
        


( Fontes: Manuel Bandeira, Oscar Wilde, The Independent, The New York Times, O Estado de S. Paulo )



[1] frieza, ar remoto; postura remota, de afastamento pessoal.

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