domingo, 7 de outubro de 2018

7 de Outubro de 2018


                                

        Para os veteranos como eu, que venho do século XX - aquele que começou tão bem com a Belle Époque de meus pais e avós (que em paz descansem!) para na sua primeira década atolar-se nas trincheiras da Grande Guerre , como a chamaram em francês, por haver transcorrido uma 'boa' parte  naquele lamacento inferno.  
            Lembro-me bem ter ouvido - pois ainda não havia nascido naquela brutal segunda década - dos favores daquela grandiosa ouverture do século, em que os grandes transatlânticos carregavam, com conforto e calma, os alegres viajantes. Para viajar para a Europa e os Estados Unidos, não se carecia de passaporte. Essa invenção da burocracia só apareceria quando a Belle Époque sumira do mapa, com a desconfiança que passaram a merecer os estrangeiros.
             Filho do século passado, aquele que se inicia com o atentado de Gavrilo Princip contra o herdeiro da monarquia dual (Áustria-Hungria), a 28 de junho de l914, Francisco Ferdinando e esposa, o terrorista sérvio morreria placidamente na cama, décadas após a grande primeira catástrofe do século, que principiara com tão belos presságios.
            Mas não nos deixemos envolver nos sedosos lençóis do saudosismo.  Para o Brasil, que participou vicariamente da primeira, e que, na segunda, embarcou com um corpo expedicionário, acordado com os aliados durante a ditadura de Getúlio Vargas, a experiência dos "pracinhas", a despeito de árdua,  transcorreu em cenário lateral, na luta contra a Itália fascista e as divisões alemãs, empenhadas em guerra secundária, buscando defender menos um regime, que desmoronava, do que uma frente em batalha que já adentrara a fase pré-terminal.  Ironicamente, meu avô lograra impedir a ida para esse cenário de guerra de meu pai, a quem vi, muito criança ainda, no corredor da casa avoenga, já vestindo a farda de oficial conscrito.
              Não tardaria muito em que me perguntasse se meu pai tivesse ido para a Itália, teria escapado do desastre da Praia Redonda, no Guaíba, quando um aviador da Varig nele lançaria o avião Lockheed, com seus dez passageiros, meu pai incluído, a vinte de junho de 1944. Dado o aguaceiro do momento - que faria o motorista de meu avô errar a entrada do aeroporto de Porto Alegre - muitos anos depois perguntei-me  se não teria acontecido com o piloto do Electra, da Varig, que, por causa da força da intempérie, perdesse a noção da altitude e investisse contra o estuário de Porto Alegre, pensando que era uma nuvem pesada, assim como iludira há poucos anos atrás  o piloto do Ministro Teori Zavaski.
               Vivíamos então sob a ditadura de Getúlio Vargas, aquele breve período de quinze anos, que termina em 1945.
                Como é previsível - e será descrito em outro momento - tal fatalidade levaria minha mãe, depois da morte ainda na década de quarenta de meu avô Romualdo, para a então capital da República, Rio de Janeiro. Recordo-me de já em meados dos anos cinquenta haver sido convocado como mesário. Acabava de alistar-me, mal completados dezoito anos, e já a Justiça Eleitoral me laçava, como mesário-substituto, em seção eleitoral próxima, senão me engano, da Praça Serzedelo Correia, em Copacabana.   
                   Outras datas presidiam as eleições daquela década, mas o três de outubro era a principal,  estando o sistema político ligado ainda à revolução de 1930.
                    Sob o império do subdesenvolvimento, as datas e o seu significado podem mudar e muito. No entanto, passados tantos anos, pergunto-me se a presença de outubro, ainda se afirme, ainda que o três de outubro não mais conste como efeméride em vigor.
                     Neste sete de outubro, a presença militar continua, mas ela se afirma em roupagem democrática. Jair Bolsonaro é decerto um militar, mas a sua candidatura tem muito pouco a ver com as tramas golpistas dos anos quarenta e cinquenta - que antecederam a chamada Gloriosa, a dita revolução de trinte e um de março de 1964, que se estenderia até a década de oitenta, e que tanto marcaria a minha geração.
                       Não foi só por isso que não votei no candidato Jair Bolsonaro. Sem nada pessoal contra o ex-deputado, lamentei, como muitos outros, a facada que lhe infligiu o tal Bispo. Tenho para mim, no entanto, que, sem decerto querer, o quase-assassino, ao faze-lo atravessar essa cruenta e terrível passagem,  terá contribuído para um aprendiza- do no sofrimento e na visita às agônicas vascas, no sentido da avaliação das limitações existenciais a que a condição humana nos impõe. Em outras palavras, deu-lhe, mesmo não querendo, uma pausa para a reflexão. Por isso, espero que esse episódio possa haver contribuído para que Bolsonaro dele ressurja  com visão diversa das contingências existenciais. A experiência, na sua cruel e cruenta exposição, pode ser assim um empurrão - tão violento quanto injusto - mas que possa ter consequências que, de alguma forma, se sobreponham às condições passadas. Ninguém entra nisso por querer, mas não são poucos aqueles que saem transformados por essa terrível experiência.


(Fontes: experiência de eleitor na eleição de sete de outubro corrente;   July, 1914, de Sean McMeekin, Basic Books, New York, 2013 )

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