Para
os veteranos como eu, que venho do século XX - aquele que começou tão bem com a
Belle Époque de meus pais e avós (que
em paz descansem!) para na sua primeira década atolar-se nas trincheiras da Grande Guerre , como a chamaram em
francês, por haver transcorrido uma 'boa' parte
naquele lamacento inferno.
Lembro-me bem ter ouvido - pois ainda não havia nascido naquela brutal
segunda década - dos favores daquela grandiosa ouverture do século, em que os grandes transatlânticos carregavam,
com conforto e calma, os alegres viajantes. Para viajar para a Europa e os
Estados Unidos, não se carecia de passaporte. Essa invenção da burocracia só
apareceria quando a Belle Époque
sumira do mapa, com a desconfiança que passaram a merecer os estrangeiros.
Filho do século passado, aquele que se inicia com o atentado de Gavrilo Princip contra o herdeiro da monarquia
dual (Áustria-Hungria), a 28 de junho de l914, Francisco Ferdinando e esposa, o
terrorista sérvio morreria placidamente na cama, décadas após a grande primeira
catástrofe do século, que principiara com tão belos presságios.
Mas
não nos deixemos envolver nos sedosos lençóis do saudosismo. Para o Brasil, que participou vicariamente da
primeira, e que, na segunda, embarcou com um corpo expedicionário, acordado com
os aliados durante a ditadura de Getúlio Vargas, a experiência dos
"pracinhas", a despeito de árdua,
transcorreu em cenário lateral, na luta contra a Itália fascista e as
divisões alemãs, empenhadas em guerra secundária, buscando defender menos um
regime, que desmoronava, do que uma frente em batalha que já adentrara a fase
pré-terminal. Ironicamente, meu avô lograra
impedir a ida para esse cenário de guerra de meu pai, a quem vi, muito criança
ainda, no corredor da casa avoenga, já vestindo a farda de oficial conscrito.
Não tardaria muito em que me perguntasse se meu pai tivesse ido para a
Itália, teria escapado do desastre da Praia Redonda, no Guaíba, quando um
aviador da Varig nele lançaria o avião Lockheed, com seus dez passageiros, meu
pai incluído, a vinte de junho de 1944. Dado o aguaceiro do momento - que faria
o motorista de meu avô errar a entrada do aeroporto de Porto Alegre - muitos
anos depois perguntei-me se não teria acontecido
com o piloto do Electra, da Varig, que, por causa da força da
intempérie, perdesse a noção da altitude e investisse contra o estuário de
Porto Alegre, pensando que era uma nuvem pesada, assim como iludira há poucos
anos atrás o piloto do Ministro Teori Zavaski.
Vivíamos então sob a ditadura de Getúlio Vargas, aquele breve período de quinze anos, que
termina em 1945.
Como é previsível - e será descrito em outro momento - tal fatalidade
levaria minha mãe, depois da morte ainda na década de quarenta de meu avô
Romualdo, para a então capital da República, Rio de Janeiro. Recordo-me de já em
meados dos anos cinquenta haver sido convocado como mesário. Acabava de
alistar-me, mal completados dezoito anos, e já a Justiça Eleitoral me laçava,
como mesário-substituto, em seção eleitoral próxima, senão me engano, da Praça
Serzedelo Correia, em Copacabana.
Outras datas presidiam as
eleições daquela década, mas o três de outubro era a principal, estando o sistema político ligado ainda à
revolução de 1930.
Sob o império do subdesenvolvimento, as datas e o seu significado podem
mudar e muito. No entanto, passados tantos anos, pergunto-me se a presença de
outubro, ainda se afirme, ainda que o três de outubro não mais conste como
efeméride em vigor.
Neste sete de outubro, a presença militar continua, mas ela se afirma em
roupagem democrática. Jair Bolsonaro é decerto um militar, mas a sua
candidatura tem muito pouco a ver com as tramas golpistas dos anos quarenta e
cinquenta - que antecederam a chamada Gloriosa, a dita revolução de trinte e
um de março de 1964, que se estenderia até a década de oitenta, e que tanto
marcaria a minha geração.
Não foi só por isso que
não votei no candidato Jair Bolsonaro. Sem nada pessoal contra o ex-deputado,
lamentei, como muitos outros, a facada que lhe infligiu o tal Bispo. Tenho para
mim, no entanto, que, sem decerto querer, o quase-assassino, ao faze-lo
atravessar essa cruenta e terrível passagem,
terá contribuído para um aprendiza- do no sofrimento e na visita às
agônicas vascas, no sentido da avaliação das limitações existenciais a que a
condição humana nos impõe. Em outras palavras, deu-lhe, mesmo não querendo, uma
pausa para a reflexão. Por isso, espero que esse episódio possa haver
contribuído para que Bolsonaro dele ressurja
com visão diversa das contingências existenciais. A experiência, na sua
cruel e cruenta exposição, pode ser assim um empurrão - tão violento quanto
injusto - mas que possa ter consequências que, de alguma forma, se sobreponham às condições passadas. Ninguém entra nisso por querer, mas não são poucos
aqueles que saem transformados por essa terrível experiência.
(Fontes: experiência de eleitor na eleição de sete
de outubro corrente; July, 1914, de Sean McMeekin, Basic
Books, New York, 2013 )
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