quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Guarda Infiel ?

                                             

       Há clara deterioração a respeito da observação e cumprimento dos preceitos constitucionais que regem a censura, tanto no que tange à liberdade de expressão (inciso IX, art. 5º ), quanto à sua vedação, se de natureza política, ideológica e artística (art. 220, parágrafo 2º ).
       Quando da promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, esse aspecto marcante da Carta Cidadã foi acolhido pela sociedade civil com grande satisfação. O estado de espírito da opinião pública, por muitos anos – e não só no longo e plúmbeo período da chamada Revolução de 31 de março, mas também sob a Constituição de 1946, em que imperava a censura policial – debaixo da tutela do arrocho ideológico, repudiava em silêncio a cristalização do preconceito.
      Compreende-se, portanto, a euforia com que a supressão da censura foi recebida. Frases como ‘censura, nunca mais !’ eram ilustrativas do regozijo social. Nesse momento de júbilo, o próprio Ministro da Justiça, o saudoso Fernando Lyra, repetiu tal dito, com a convicção de quem olha para o futuro com firme confiança.
      E não era para menos. Durante longo e tenebroso inverno, não só se atentara ao livre pensamento, mas também se praticara impunemente a tortura, essa embuçada comparsa da censura, em termos de negação da liberdade e do respeito ao cidadão. Por isso, a sociedade civil, embalada pela restauração da democracia, ousou supor que bastaria a cláusula pétrea do artigo 5º, inciso IX, e a sua consequente vedação pelo artigo 220, parágrafo 2º para que desaparecesse para sempre o avantesma da censura.
     Sem embargo, já tínhamos ouvido que o preço da liberdade é a eterna vigilância. E não se tenha dúvida em que companhia haveremos de lobrigar a carantonha da censura. Quiçá o erro básico do legislador tenha sido a não-explicitação em lei constitucional das múltiplas proibições no que concerne aos avatares da negação institucional do pensamento livre.
      Sob muitos aspectos, o legislador não cuidou em abrir de par em par as disposições legais de proteção dessa liberdade democrática. No espírito tão bem simbolizado pelo Ministro Lyra, pensou-se acaso que a tácita mens legislatoris luziria para sempre, com a preservação do espírito libertário da Constituição Cidadã ?
      Pois a censura, este gênio mau da negação do conhecimento, da cega repressão, e da intolerância, não tardaria em encontrar os lúridos trajes necessários para reapresentar-se. Fê-lo a princípio de forma sub-reptícia, mas não por muito. E para completar a implícita, cruel ironia ressurgiu sob a forma de um oximoro, vale dizer, a censura judicial.
      É difícil entender que alguns magistrados – que se presume entendidos no direito, que tem a sua base na Constituição – ora se empenhem nessa estreita e dúbia vereda da censura dita judicial.
       Nos últimos tempos, dado o atrevimento e a incidência, há sobejo motivo para temer uma suposta liberação total ao revés. A tropelia à Constituição se alastra, a ponto de que os jornais sequer reputem seja matéria de primeira página. Assim, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) aponta seis casos de censura judicial a meios de comunicação do país no corrente ano. Assim, a justiça proibiu a “Gazeta do Povo” de publicar reportagens contra o Presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, Clayton Camargo. Até coluna humorística – no caso José Simão, da Folha – é censurada, desta feita pela juíza Camila Castanho Opdebeeck, de Indaiatuba, que determinou a retirada de qualquer forma de veiculação eletrônica da coluna de 22 de agosto de 2012, a pedido da ex-candidata a vereadora Alzira Cetra Bassani. Por sua vez, no Recife, dois jornais e uma emissora de TV de Pernambuco estão proibidos de citar o nome e usar a imagem do presidente da Assembléia Legislativa do Estado, Guilherme Uchoa (PDT), em reportagem sobre suposto tráfico de influência envolvendo sua filha, a advogada Giovana Uchoa.
        Esta coluna, em especial no que concerne à sentença de censura determinada ao Estado de São Paulo, pelo desembargador Dácio Vieira (TJ-DF), em ação de Fernando Sarney, filho do então Presidente do Senado, José Sarney, já se manifestou por muitas vezes, no que respeita à atitude do Supremo Tribunal Federal.
         Mais do que perder a oportunidade de dizer um não à censura, o Supremo preferiu não ver a importância de uma condenação da censura, ao denegar a liminar da banca do Estadão, sob pretexto de não ser apropriada a via utilizada pelo recurso. Mais do que um tropeço, a nossa Corte Suprema perdeu, na oportunidade, a ocasião de derrogar a censura (houve quatro ministros que votaram pela aceitação da liminar).
         Dado o letargo de nosso Tribunal Constitucional, como o inço nas plantações descuidadas, a censura cresce e se propaga à vista de todos, em especial, mas não só, em ditames de juízes de primeira instância.  A própria absurda sentença do desembargador Dácio Vieira (TJ/DF) já fez vários aniversários, e por enquanto, para vergonha de quem deveria derroga-la, continua de pé.
         Já dissera que à tragédia, sucede a farsa. É o que nos é dado ver neste momento, quando por negligência o Supremo parece ressonar, enquanto a farra da censura judicial se propaga – e não só nos grotões interioranas, senão na própria capital da república – sob as barbas de quem deveria atentar mais para a respectiva missão de guardião da Constituição Federal, de cinco de outubro do ano da graça de 1988.
         Será que vamos consignar os seus preceitos sobre a abominação da censura às urtigas?  Pode ser que seja, como nos escreve Drummond, só um retrato na parede. Mas como dói!

 

(Fontes:  O  Globo,  Folha de S. Paulo,  Estado de S. Paulo )   

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