O que a esquerda italiana não conseguira, coube à crise financeira europeia tornar realidade. A despeito das tentativas do Cavaliere Silvio Berlusconi de oferecer aos mercados as medidas de saneamento que reclamavam – a dívida italiana corresponde a pelo menos 121% do PIB – o seu retrospecto não induzia à necessária confiança.
Embora o tamanho da economia italiana tenda a incluí-la naqueles países demasiado grandes para cairem em bancarrota – tal seria o dúbio ‘privilégio’ de nações menores como Portugal e Irlanda -, devido a seus parâmetros negativos, as taxas de juros cobradas de seus títulos alcançam níveis escorchantes, o que claramente decorre mais da falta de segurança no que tange ao gestor, do que à própria economia.
Sobretudo em função dos últimos anos de sua liderança, Berlusconi é apresentado como personagem caricato, com ditos inconvenientes e fora de propósito, envolto em série de processos judiciais, cíveis e penais, em que suas práticas condenáveis e alegadas orgias vieram à lume. Aliando os traços histriônicos que se associam a personagens italianos – entre eles, Benito Mussolini – não devemos nos apressar nos anátemas, como se estivéssemos lidando com alguém fora de contexto.
Sem dúvida, Silvio Berlusconi não permaneceu dezessete anos no poder por acaso. Ingressa no mundo político italiano já como empresário bem-sucedido. Proprietário de várias redes privadas de televisão – a princípio com alcance nacional por uma série de truques e conivências -, o Cavalieri entrou na política com o hábito de costurar alianças com as novas forças egressas do esfacelamento da democracia cristã, diante do passamento do regime parlamentarista clássico, que se caracterizara pela instabilidade dos gabinetes.
Com o seu carisma, ele soube catalisar as forças conservadoras e da direita na Itália. Dado o virtual desaparecimento dos dois grandes pilares da democracia italiana – a democracia cristã e o partido comunista, como forças agregadoras da direita e da esquerda respeitáveis – armado de sua peculiar desenvoltura, Berlusconi, sem as hesitações da aliança da oliveira (gli Ulivi), soube imantar uma frente direitista, para que atraíu os egressos do MSI (os filo-fascistas), os separatistas do norte e a massa popular tornada órfã dos antigos partidos liberais e democratas, oriundos das passadas coalizões da direita moderada.
Para manter uma frente tão heteróclita quanto a acima referida, por um período tão alentado (dividido em três períodos de governança: 1994 a 1995; 2001 a 2006; e 2008 a 2011), Berlusconi se valeu do próprio carisma (com a implícita promessa da continuidade no poder), da respectiva habilidade (manipulando interesses díspares e por vezes antinômicos) e, last but not least[1], muita flexibilidade, por vezes excessiva, e um mínimo denominador ideológico.
Com exceção de seu último biênio, em que a crescente falta de apoio exigia um malabarismo sempre maior, com repetidos votos de confiança sempre mais precários, o que pode ser atribuído ao incremento da corrupção e das práticas contestáveis, os longos anos do Cavalieri no poder não encontraram ameaça digna deste nome na oposição, com exceção do período em que esteve na planície perante a coalizão de esquerda de Massimo d’Alema – entre 1996 e 2000.
Nesses cinco anos, a coalizão da oliveira (de esquerda) não soube prevalecer-se de sua respectiva maioria para incriminar o chefe da direita – Silvio Berlusconi – por suas falhas políticas e governamentais. Pela própria inépcia, a coalizão das esquerdas não se mostraria confiável para a maior parte do povo italiano.
Sobrevivente político, Silvio Berlusconi aprenderia a lição. Através de uma rede de leis e leizinhas de dúbia constitucionalidade – a ponto de que sua estratégia da imunidade para ele próprio e seus ministros cairia na Corte de Constitucionalidade – o Cavalieri saberia manipular com os instrumentos do poder a sua permanência, assim como, inviabilizaria a reação da oposição – no frágil gabinete de Romano Prodi, no virtual interregno de 2007 – para que a esquerda não tivesse de novo a possibilidade, que desperdiçara no periodo anterior, de se colocar como alternativa viável à direita capitaneada por Berlusconi.
No seu fim de reino, ele começou a representar o papel do velho e decadente imperador, um redivivo Tibério, com suas festinhas de Capri transferidas para a Sardenha. Mesmo para padrões itálicos os seus gabinetes incharam deveras, com grande número de ministros e sobretudo de ministras.
Como outros no passado, o contexto em que surgira, e as reuniões do então todo-poderoso G-7 de que participara, já haviam entrado para a história. Acolhido por Bill Clinton (EUA), François Mitterand (França) e Helmut Kohl (Alemanha), não se relacionou muito bem com os neófitos Barack Obama, Angela Merkel (a ambos brindou com comentários desairosos) e Nicolas Sarkozy.
Com a sua maquiagem cada vez mais pesada, as incôngruas decantadas proezas sexuais, e o envolvimento progressivo no submundo dos processos, Silvio Berlusconi se tornaria a caricatura de um farsesco personagem italiano, que subsiste nas estórias populares.
A sua saída de cena – ao manifestar-se maciça defecção na anterior maioria parlamentar – ter-se-á prolongado pelas suas postergações quanto à renuncia ao cargo. Dificultou ao máximo o trabalho do Presidente da República, o ex-comunista Georgio Napolitano, para encaminhar a indicação do seu sucessor designado. O novel Senador vitalício Mario Monti tem os requisitos técnicos para o momento, malgrado seja discutível que um presidente do conselho com as suas características vá ter na Itália vida política longa.
A única exigência a que Berlusconi aspira seria a de não atolar-se no chavascal de processos criminais. Posto que nada tenha a ver com os procedimentos sumários que caíram sobre a cabeça de outros líderes longevos, semelha nesse momento discutível se il Cavalieri conseguirá, no apagar das luzes, mais esse malabarismo.
A meu modesto ver, Silvio Berlusconi tem algum direito a não ser considerado fenômeno de excepcionalidade única. Na verdade, Berlusconi é criatura que floresceu em um meio político determinado, do qual não pode ser dissociado.
( Fonte subsidiária: Folha de S. Paulo )
2 comentários:
Fazendo um teste
Com este perfil tào bem traçado de um político caricatura, que ocupou por tanto tempo o poder, sempre me perguntei como a Itália, com um Primeiro Ministro deste calibre, teria autoridade para cortar relações com o Brasil, em função do caso Battisti. Agora lendo o blog de hoje entendi melhor a composição do poder e o porquê das acusações contra o referido refugiado. Cada vez gosto menos de política
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