A leitura pelo Exército e o Marechal de Campo Mohamed Hussein Tantawi de o que significava a grande concentração na Praça Tahrir se mostrou não só demasiado seletiva, mas sobretudo de canhestra instrumentalização.
O movimento congregara não só os jovens, as camadas populares, mas também simpatizantes islamitas da Fraternidade Muçulmana, e a própria minoria copta. Ler toda aquela expressão, em grande parte espontânea, como simples repúdio à ditadura de Hosni Mubarak e, portanto, como reação superficial ao personalismo do regime seria dar prova ou de consumada má-fé, ou de grosseira análise da realidade política. A figura de proa da instituição armada, o Marechal Tantawi, por muitos anos visto seja como preposto (e até ‘poodle’) de Mubarak, como bom camaleão mudou de cores, adaptando-se à nova situação. Diante do longo predomínio do mando castrense – que se estende desde a derrubada do rei Faruk, em 1952 – a voluntária obtusidade militar em compreender o sentido da sublevação de fevereiro último pode até ser inteligível para muitos, na medida em que o poder de Mubarak era uma expressão do exército, em termos de estamento privilegiado, de onde promanava o seu personalizado mando.
Nesse sentido, os companheiros de farda o viam como o responsável de turno pela guarda temporária da situação da instituição, i.e., como primus inter pares, situação essa que não surgira de um dia para outro, como o demonstrava a sucessão de meio século, iniciada por Gamal Abdel Nasser, e recebida por Anuar el-Sadat e o próprio Hosni Mubarak.
Pela tentativa de personalizar tal ‘direito’, intentando torná-lo hereditário, o presidente Mubarak enfraquecera a respectiva posição, eis que se afastou de sua condição intrínseca de cessionário perante os seus camaradas.
Dessarte, do ponto de vista do Exército se afigura clara a opção institucional, com o afastamento das pessoas designadas pelo ditador, como o vice-presidente Omar Suleiman, e a tradição do poder recaindo, consoante a hierarquia chinesa, sobre a máxima autoridade real, no caso o ministro da Defesa, Marechal Tantawi.
Em termos de potencial contestação à respectiva situação de controle, todo militar, e até os mais intelectualizados, tende a ver com certo menoscabo as revoltas populares, por mais profundas que lhes sejam as causas, e por mais espontâneas que repontem no horizonte. Assim, o velho general Charles de Gaulle, já no outono de sua presidência, pespegara no movimento de maio de 1968 em Paris o medieval apodo de ‘chienlit’, como se não passasse de arruaça estudantil.
Descumprindo todas as promessas de ceder a seu tempo o mando, além de indicar a posição acima da Constituição do Exército – na essência o poder máximo, diante do qual se curvam as instâncias civis – o marechal Tantawi terá julgado maduro o momento de balizar os limites.
Entra-se assim em uma segunda fase nesse antagonismo. Cabe ao futuro indicar se os eventos da praça Tahrir – que derrubaram a trintenal ditadura de Mubarak – foram ou um levante, ou uma revolução. O recrudescimento da resistência tende a indicar que o marechal terá sido um tanto sôfrego na sua pressa de recolocar as condições aonde desde muito se encontravam. As primeiras refregras relembram os choques primevos naquela Praça, quando a polícia – e também destacamentos do Exército – buscavam dispersar com a consueta violência os desordeiros.
Tudo dependerá da consistência e da extensão da reação ao propósito restaurador do comandante militar. Se se confirmar o apoio da Fraternidade Muçulmana, e se a resistência alçancar os demais segmentos da sociedade egípcia, o embate se tornará mais sério e profundo, e os eventuais prognósticos carecem de aguardar a evolução dos acontecimentos, e a têmpera das partes em conflito.
( Fontes subsidiárias: International Herald Tribune, Folha de S.Paulo )
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