Não, meu caro leitor, está correta a grafia nobel do título em letras minúsculas. Pois este prêmio não passa de factóide conjuminado pela nova meca dos regimes autoritários deste mundo.
No ano passado, o governo tecno-burocrático de Beijing, atarantado com a concessão do Prêmio Nobel da Paz a Liu Xiaobo, o intelectual político condenado a onze anos de cadeia na Prisão Jinzhou, longínqua masmorra em Liaoning, no norte da China. O seu ‘crime’ terá sido coordenar a elaboração do manifesto Carta 08, um modesto projeto de aprendizado democrático, que teria decerto sido subscrito por Zhao Ziyang.
Como se sabe, este último, defenestrado da Secretaria-Geral do PCC por ordem do ancião Deng Xiaoping, em 1989, pela ousadia de opor-se ao massacre de Tiananmen. Despojado de todas as suas posições no partido, em junho de 1989, em reunião especial de um politburo alargado, enfrentou com dignidade dezesseis anos de prisão domiciliar.
Tementes de sua popularidade, os comissários não se atreveram a jogá-lo em cadeia comum, como fariam mais tarde com o pobre Liu Xiaobo. Faleceu em 17 de janeiro de 2005, e o seu passamento, tratado como segredo de estado, não impediu que um punhado de admiradores lhe prestasse a homenagem a quem desejara preparar a China para a democracia, de modo a salvá-la da corrupção do poder absoluto.
Liu Xia, a esposa reclusa – e não por própria vontade – deste heróico prêmio Nobel, pôde afinal em breve visita ao marido informá-lo da concessão do prêmio.
Os gerarcas chineses, irritados com a audácia da premiação, tudo fizeram para atenazar a pequena Noruega, a quem incumbe a seleção do nobel da Paz, por comitê presidido por Thorbjoern Jagland, para que voltasse atrás, chegando mesmo a cancelar missões comerciais previamente acertadas e demais baixarias congêneres.
Sem saber a quem emulavam, os energúmenos encarregados da resposta à alegada afronta, proibiram que a esposa ou qualquer outro representante familiar comparecesse à cerimônia da adjudicação do Prêmio. Pois não é que davam as mãos ao Führer Herr Adolf Hitler, que também encolerizado vedara qualquer representação ao escritor pacifista Carl von Ossietzky, a quem o comitê galardoara em 1936 com o Nobel da Paz !
Ensandecidos pela grave ofensa ao bom nome do Império do Meio, os líderes chineses acolheram com a álacre mas sisudamente composta disposição que os caracteriza a ideia de lançar prêmio que a um tempo pusesse no seu devido lugar o bando de trêfegos e provocadores noruegueses, assim como celebrasse os valores milenares da cultura chinesa.
O nobre apparatchik que reivindica tal iniciativa, Qiao Damo, co-fundador e presidente do comitê do Prêmio de Paz Confúcio, tem encontrado, no entanto, alguma oposição à comenda, inclusive do Ministério da Cultura. De modo surpreendente para os dedicados promotores, se determinou ao comitê de estudiosos que se abstivesse de contatos com o ministério. Tampouco poderia ser dito ter o prêmio qualquer apoio oficial.
A trajetória desse concorrente do Nobel até o presente não tem sido muito brilhante. O primeiro a ser distinguido foi o político de Taiwan, Lien Chan, que, ao ser perguntado por jornalistas estrangeiros, afirmou nunca ter ouvido falar de tal prêmio. Não compareceu à cerimônia de premiação, ainda que o Prêmio de Paz Confúcio viesse com cheque equivalente a quinze mil dólares.
No lugar do premiado, apareceu mocinha chinesa que aceitou a estatueta e um maço de notas. Aliás, o comitê organizador se mostrou deveras compreensivo: dada a novidade da distinção, reconhece ‘ser permissível que o ganhador não o aceite e até mesmo venha a rejeitá-lo’.
Quanto ao segundo prêmio de paz Confúcio ele vai para... Vladimir V. Putin, atual Primeiro Ministro da Federação Russa, e muito provavelmente o vindouro Presidente da República.
Em sua mensagem alusiva às razões do galardão, na guerra da Tchetchênia, encetada em 1999, “a mão de ferro (de Putin) e a têmpera revelada no conflito muito impressionaram os russos, que nele viram alguém capaz de trazer a segurança e a estabilidade à Rússia.” Sem embargo, o prêmio Confúcio vale também não só para os justos combates, senão pela eventual oposição à própria guerra, como, v.g., na sua discordância com os bombardeios da OTAN na Líbia.
Consoante os preparativos, está em princípio marcada para o dia nove de dezembro a outorga do prêmio a Putin. Não há menção de qualquer soma em renmimbi. O senhor Qiao elogiou Putin pela circunstância de ter sido selecionado para ser agente do KGB quando ainda estava na universidade. Também enalteceu-lhe a atuação como propagandista dos correntes eventos políticos.
O caráter críptico de tais encômios talvez deva ser interpretado para realçar o senso político de que carece como segunda natureza um dedicado agente de informação que terá sido o jovem Vladimir Putin.
Ainda não se sabe se Putin aceitará ou não comparecer à cerimônia. Terá o autocrata presente a disparidade entre o salão de Oslo, onde tantos estadistas e pessoas de nomeada receberam o prestigioso prêmio do comitê de Oslo, e um lugar sem qualquer tradição, em reunião para conceder um galardão desconhecido, inventado de afogadilho para dissimular a irritação do regime com o Nobel da paz outorgado a um prisioneiro dos cárceres da ditadura chinesa ?
( Fonte: International Herald Tribune )
[1] ersatz é o vocábulo alemão empregado para designar, em geral, um produto substituto, preparado para suprir a falta de matéria prima, como por exemplo, café ersatz. Pelas circunstâncias, o termo tem de hábito conotação pejorativa.
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