sábado, 3 de setembro de 2011

Visões do Planalto

           O Governo de Dilma Rousseff emite vários sinais, muitos deles contrastantes. Para a saúde, a presidente reenceta a cantilena de mais um imposto, no caso uma ‘CPMF sem desvios’. É sabido que o imposto do cheque fora obtido por Adib Jatene justamente sob tal pressuposto, apenas para ser desatendido na prática.
           O Brasil não precisa de mais um tributo. A terra do impostômetro grita, na verdade, pela reforma fiscal, mas o estamento político, a começar pela presidente, parece temer as grandes reformas. No capítulo, o comportamento presidencial não contradiz àquele de seu antecessor. As menções às reformas serão sempre vagas e inconclusivas. Se tal atitude serve para indicar uma tendência, a suposição de que não há firme determinação nesse sentido será a conclusão lógica e irrefragável.
           É inquestionável que esse gênero de reforma – séria e abrangente – carece de ser apresentado por presidente recém-eleito e empossado, com a força política total para arrostar as resistências no Congresso e ter condições de prevalecer no embate. Em um país com a desordem tributária e a sobrecarga fiscal do tamanho da nossa, confrange e deixa perplexo que nossos líderes optem pelo recuo quanto a tal projeto, e que prefiram a dúbia ‘solução’ de agregar mais um tributo em malha fiscal sempre mais opressiva e ineficaz.
           O chamado ‘custo Brasil’ não pára de aumentar, pela capacidade do incremento vegetativo das taxas e impostos. Dado o pífio retorno que o cidadão e a sociedade obtêm desse esforço – que nos coloca nos mais altos escalões em termos de tributação bruta – não é segredo para ninguém que o precípuo obstáculo a ser vencido não está na agregação de mais recursos.
           O Brasil, nos seus três níveis – federal, estadual e municipal – precisa resolver este falso enigma da carência de recursos efetivos para que o retorno se traduza em meios para atender às necessidades sociais da população.
           Chamemos tal disfunção por desperdício. Sob esse título muitos ralos se encontram para desviar parcelas variáveis do total da arrecadação. A corrupção, esta imensa hidra de tantas cabeças e de inúmeros tentáculos, constitui talvez o vazamento mais importante, posto que exista uma pluralidade de descaminhos para a inchação dos dispêndios.
           Herança do período inflacionário – o Plano Real, ora ameaçado, não fora ainda introduzido – a Constituição de cinco de outubro de 1988 ensejou a manutenção de um gatilho em termos de remuneração, o qual representa uma inversão do processo legiferante. Para determinar o teto dos vencimentos dos servidores do Estado, consentiu-se que para tanto valesse de parâmetro o Poder Judiciário. Nesse sentido, como se sofrêssemos ainda do látego da carestia, a cada ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal estabelece o índice de reposição salarial, que é, em seguida, aplicado aos ministros do STF, e sucessivamente a todo o Poder Judiciário.
           Não se trata apenas de uma renúncia do Poder Legislativo, a que sempre coube esse gênero de providência. Nesta primeira judicialização de suas competências, a atribuição passou a ser da área judiciária, como de resto acaba de verificar-se pela intervenção do atual presidente do STF. Dilma Rousseff, no entanto, preferiu encaminhar ao Congresso a proposta de orçamento, nela inclusa o pedido da Justiça, mas deixando ao Poder Legislativo o ônus de aprovar o gasto suplementar de R$ 7,7 bilhões para aumentos salariais no Judiciário. Fê-lo baseada “no respeito republicano da separação dos Poderes”. Sem embargo, assinalou que tal “prejudicaria a efetiva implementação de políticas públicas essenciais, como as da Saúde, Educação e redução da miséria". Por sua vez, o Ministro Cezar Peluso sublinhou que ‘o governo se equivocou ao mandar para o Congresso proposta de orçamento do Judiciário com cortes’. No seu entender, ‘a presidente deveria ter encaminhado integralmente a contabilidade recebida de suas mãos há um mês.’
           Verifica-se que a Presidente da República findou pela opção de deixar a questão ao critério do Congresso Nacional. Grita aos céus, sem embargo, que, por mais se deva atentar para a autonomia dos poderes, sobreleva o interesse da União Federal. Nesse sentido, cabe ao Poder Executivo, submetido ao sistema de controles dos demais poderes (checks and balances) formular política unificada e coerente, que atenda ao interesse geral.
           A atitude da Primeira Magistrada foi discutida pelos ministros do Supremo a portas fechadas, segundo reporta matéria de O Globo. A respeito, as declarações do Ministro Marco Aurélio Mello – que manifestara indignação – semelham bastante ilustrativas : “Essa doutrina foi fixada no início da vigência da Constituição de 1988. O que cumpre ao Executivo é consolidar a proposta da União e encaminhá-la aos deputados e senadores. O que não cabe é o Executivo substituir o Judiciário. (...) A quadra que vivenciamos é um tanto quanto estranha. Potencializando-se o objetivo, que é evitar a inflação e caminhar para o enxugamento da máquina administrativa, se acaba atropelando a Constituição.” (meu o grifo)
           A cada ano, com base na pletora de índices disponíveis para a atualização de salários e outros valores – um resquício da era inflacionária cuja sobrevivência é tolerada por uma cultura que é a antítese da estabilização alcançada pelo Plano Real -, acha-se embutido nos vencimentos dos juízes um gatilho que tende a automatizar a elevação do teto salarial, como se ainda vivêssemos em período inflacionário. Será por força de tais considerações, talvez, que o Ministro Mello tenha aludido à eventualidade de ‘atropelar a Constituição’. Todas essas preocupações anuais de atualização de suas altas remunerações podem ser atribuídas a uma mens legis dos tempos da inflação. Ensejar a sua correção a cada ano no cenário corrente – que, s.m.j., não é inflacionário – tenderá a objetivo que está na contramão do desígnio da estabilização.
                                                                                                                   ( a continuar )

( Fonte: O Globo )




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