Que Barack H. Obama atravesse um momento difícil é fato público e notório. Resta-nos olhar à volta e determinar as causas da situação que não acena com rápidos e felizes desenlaces.
Desde o seu primeiro Discurso do Estado da União, no auge da popularidade, no grande salão do Congresso repleto, cercado pelas maiorias democratas na Câmara e no Senado, de súbito, como em céu azul, riscou a atmosfera um impropério, proferido por anônimo deputado republicano: You lie ! (Você mente!) Em meio ao geral constrangimento, o novo presidente, após átimo de sobressalto, prossegue com a alocução.Mais tarde, na Casa Branca, ele aceitaria o telefonema de Joe Wilson (Rep/SC) de desculpas por aquele ato sem precedentes na liturgia do poder estadunidense. Na verdade, a interrupção fora tão abusiva quanto indesculpável. Duas características daquele grosseiro aparte não mereceram a atenção devida: primo, a inaudita agressividade contra o Presidente dos Estados Unidos; secondo, a maneira demasiado rápida com que Obama relevou o doesto.
Durante a primeira metade do mandato, Obama e a Casa Branca se mantiveram em postura de relativo isolamento da realidade política americana. Seria como se o Partido Democrata devesse cuidar de seus problemas, restringindo ao mínimo a participação da presidência nas questões paroquiais dos estados e condados da União americana.
Dito dessa forma se tem a impressão de que a atitude da Administração Obama estava certa. Na verdade, o poder não deve insular-se da realidade circundante. Prova disto foi a intervenção demasiado tardia em crise que fermentava no estado de Massachusetts, na eleição especial para prover a cadeira deixada vazia por Ted Kennedy (que jamais perdera eleição no estado). Primando pelo distanciamento, Obama não soube da campanha desastrosa movida pela democrata Martha Coakley, indicada para suceder a Kennedy. Tampouco se inteirou da inopinada ameaça colocada por Scott Brown, o rival a princípio inferiorizado (underdog), que valendo-se da incompetência política de Martha Coakley, saberia coser aliança com o Tea Party e os descontentes em estado liberal, onde os democratas gozam de boa posição. Quando a realidade chegou aos ouvidos do distante soberano – no caso Obama – a eleição estava praticamente decidida. Nada pôde ser feito para salvar candidata que abusara do direito de errar.
A reforma do plano geral de saúde, que a maioria democrata então no Congresso logrou fazer aprovar, avançou mais lentamente do que o previsto, porque o Presidente Obama pensou ser possível angariar apoio, mesmo parcial, do partido Republicano. Ele o fazia movido por boas intenções, eis que acredita (ou acreditava) no bipartidismo no Congresso. No entanto, o bipartidismo na política americana é criatura de épocas pretéritas, em que a direita evangélica (e a demonização do adversário democrata ora transformado em inimigo) não tinha nem fumaças da força de que hoje dispõe.
Obama, que pretende ser o conciliador por excelência, não teve presente esta fratura no corpo político de seu país. Quem projeta ilusões e julga factível torná-las realidade, corre pesados riscos de malogro. Foi o que aconteceu no caso das ‘negociações’ com a minoria republicana no Senado. Senador do GOP, Charles E. Grassley, chegara a aludir à suposta inclusão no projeto de câmaras da morte (death panels). Ora, tal senador participava de grupo bipartidário que manteve amistosas reuniões na Casa Branca para verificar da possibilidade de acordo no Senado. Deixando a iniciativa do projeto ao Congresso, concordando com a retirada da opção pública na reforma, e acreditando na boa fé dos republicanos moderados, Obama levou a maioria democrata não só a perder tempo precioso, senão permitiu a formação de associações estaduais. Com isso, enfraqueceu a reforma, e forneceu pretexto jurídico para que fosse contestada nos tribunais, como efetivamente foi em estados controlados pelo GOP. Presume-se que a tramitação se estenda até a Suprema Corte. No presente, há uma maioria de cinco para os conservadores, embora o decisivo quinto voto, de Anthony Kennedy, não seja tão certo quando o do núcleo duro dos outros quatro (Scalia, Thomas, Alito e John Roberts, o Presidente da Corte) A sorte da Reforma da Saúde muito dependerá do resultado da eleição geral de 2012.
A Administração Obama não reagiu com a ênfase e a amplitude necessárias para rebater a insidiosa e mesmo caluniosa campanha do GOP, e em especial de sua ultradireita, o Tea Party, que se empenha em desvirtuar a reforma, que chama de Obamacare, ao invés de Health Care reform (Reforma da Assistência Sanitária). A má-fé, muita vez mesclada com cegueira política, não logra distinguir o que essa legislação representa para o povo americano. Na verdade, apesar dos defeitos acima referidos, é grande conquista que estende a cobertura do seguro à parcela importante da população até àquela data desvalida. A reforma da Saúde representará economia para os cofres públicos – conforme demonstrado pelo Bureau Orçamentário do Congresso, que é apartidário -, levará ao barateamento da assistência médica e farmacêutica, hoje a mais cara do planeta, e, se afastadas as contestações jurídicas, implementará anseio perseguido desde o começo do século XX.
Esse traço conciliatório do Presidente Obama, com o tropeço nas eleições intermediárias de novembro de 2010 – em que seria arrebatado aos democratas o controle da Câmara de Representantes - implicaria em outras consequências negativas e até nefárias para a política americana, e, em especial, para as perspectivas do 44º presidente ser reeleito em novembro de 2012.
Fazendo relembrar o Contract with America (Contrato com a América) de Newt Gingrich, em 1994, radicais de direita, com forte aporte do movimento reacionário ultra-direitista do Tea Party, dividiram na prática o governo americano, cindido por frontal oposição entre as duas Câmaras. Avultava, assim, a aspiração republicana de que a tomada da Câmara fosse a ponte de lança da desejada ‘reviravolta’ de 2012, que concretizaria o anelo da retomada do Senado e, em especial, da Presidência pelo GOP.
Ao contrário de Bill Clinton, que enfrentara Gingrich e os republicanos, e soubera preponderar em situação ainda mais difícil (os democratas estavam em minoria nas duas Casas legislativas), Barack Obama julgou possível estender ramo de oliveira a quem tinha o escopo precípuo de transformá-lo em presidente de um só mandato (Cf. Mitch McConnell, líder da minoria republicana no Senado).
Outra veleidade de Obama foi a de abraçar um alegado ‘centrismo’. Tal tendência se tornaria ainda mais marcada no debate para a autorização congressual da elevação do teto da dívida pública. O que se tornaria demasiado evidente seria a infeliz tendência de Obama em ceder às exigências sempre mais irresponsáveis veiculadas pelo novo Speaker, o republicano John Boehner. O vezo de Obama em curvar-se às condições de um adversário, que diante da fraqueza presidencial alçava as próprias cobranças, ficaria marcado – e até estigmatizado – nos entendimentos congressuais anteriores à entrada em funções da nova Legislatura, com Nancy Pelosi ainda a Speaker ( Boehner só tomaria posse em janeiro de 2011). Nesse sentido, Obama recuou da válida exigência de que não mais vigorasse a absurda concessão de Bush Jr. de baixa nos impostos, antes pagos pela camada mais rica da população.
É sempre oportuno relembrar que o Presidente Clinton tornara, depois de muitos anos, superavitário o orçamento americano. Esta situação privilegiada do Erário logo desapareceria com o sucessor, George W. Bush, ‘eleito’ pelo Suprema Corte, na sua controversa sentença contrária a Albert Gore Jr.(que no voto popular superou Bush em mais de quinhentos mil votos), quando mandara suspender a recontagem dos sufrágios na Florida. Os déficits seguintes no orçamento se devem não só a esta ‘bondade’de Bush com os patrocinadores habituais do GOP (os extratos mais ricos da população), senão também por causa das guerras ruinosas desencadeadas pelo 43º presidente americano (contra o terror e o Afeganistão, Iraque).
A propensão de Barack Obama em entregar os pontos (fold) se torna de conhecimento geral, para grande desconforto das bancadas dos democratas e dos independentes que o sufragaram em 2008.
Tal característica não só enfraquece o Partido Democrata, senão torna sombrio o horizonte da coabitação forçada por um poder legislativo dividido. Em situação similar no passado, os democratas se tinham valido de liderança mais pugnaz e afirmativa.
(a continuar)
( Fontes: O Globo, International Herald Tribune )
Nenhum comentário:
Postar um comentário