segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ligações Perigosas

           Os serviços secretos costumam ter ligações... secretas. Protegidos pela sombras (ou trevas) da discrição, que é característica da atividade, as agências de informação mantêm amiúde contatos que só podem realizar sob o manto do sigilo.
           Este pendor se tornaria mais acentuado na administração de George Bush Jr., na sua chamada guerra contra o terror. As peculiaridades do estranho conflito, sem paralelo na história das conflagrações – tais embates sóem ter inimigos identificáveis e com bases territoriais igualmente ostensivas – abriram um leque de possibilidades e de relações antes impensáveis.
           Como o inimigo perseguido era considerado esquivo, para a CIA (e o aliado MI-6) o âmbito de opções se ampliou de forma dramática e perigosa. Dentre as tenebrosas alternativas que tais centrais não trepidaram em afrontar – na sua busca do inimigo elusivo e pouco convencional – se achava a chamada política de rendition.
           A que corresponde a tal rendition, uma vez varridos névoas e subterfúgios que a envolvem ? A rendition equivale à macabra terceirização do interrogatório. Em outras palavras, uma vez capturado o suspeito, cuida-se de transportá-lo para país em que possa ser questionado de forma mais pró-ativa.
Há paradeiros de rendition na Europa oriental, mas também no Egito de Hosni Mubarak. O que não se sabia é que o itinerário da tortura incluía igualmente a Libia de Muammar Kaddafi.
           Pensando bem seria um alvitre lógico. A segurança na Jamairiya – assim como no vizinho Egito sob Mubarak – não se assinalaria por demasiados escrúpulos naquele tipo de interrogatório que Bush jr., apoiado por nefandos pareceres de sua Secretaria de Justiça timbrava em asseverar que absolutamente não se tratava de tortura.
           Este mundo dá muitos voltas. No entanto, na sua ampliação de contatos na busca de informações – por longo tempo mantida em absoluto sigilo – como os serviços de inteligência do Ocidente, notadamente a CIA e o MI-6 (que sob Tony Blair se alinhara à agência de George Tenet) poderiam imaginar que um dia o ditador Kaddafi, no poder desde 1969, seria derrubado por meio de larga sublevação ?
           Por força das peculiaridades da queda, os inacessíveis arquivos do escritório de que Abdullah al-Senoussi era o fiel depositário de repente podem ser acessados por qualquer um que se anime a adentrar os locais da antiga guarda. Al-Senoussi, cunhado do líder da Jamairiya, partilha com Kaddafi a dúbia prerrogativa de ter mandado de prisão pelo Tribunal Penal Internacional da Haia, por crimes contra a Humanidade.
           Com a annihilatio do poder do ideólogo da revolução verde – não se confunda com projetos ambientalistas – de súbito maços cheios de informes interessantes vieram a lume, abertos à consulta de repórteres que se disponham a vasculhar esses arquivos em terra de ninguém.
           Dentre os papéis, foi encontrado maço dedicado aos vira-latas (stray dogs), em que estão relacionados os nomes de inúmeros ativistas políticos, detidos décadas atrás, e dos quais se perdeu a noção do paradeiro (embora infelizmente na Líbia de Kaddafi, como na Síria de Bashar, não seja difícil alvitrar o que significa tal desaparecimento).
           Os maços cobrem centenas de pessoas, dando detalhes existenciais de tais infelizes, inclusive as respectivas posses e quem são seus amigos.
           Dados sobre indivíduos com ‘destinação política’ também são encontrados na infame cadeia de Abu Salim. Aí se realizou massacre em 1996, no qual pelo menos 1200 prisioneiros políticos foram liquidados.
           Essa oportunidade rara de investigar as ações de sanguinária ditadura – assim como eventuais cooperações com serviços de inteligência ocidentais – não está sendo desperdiçada por Saleh Marghani e um grupo de jovens advogados. Eles estão coletando material para ser apresentado em tribunais ou para consulta de pesquisadores e historiógrafos, para que os fatos venham à luz.
           Os estudiosos carecem de decifrar certas menções sinistramente oblíquas. Alguns arquivos se reportam a ‘deletar’ pessoas do banco de dados disponível. Não fica claro, no entanto, o que significa esse ‘deletar’: se apenas remover os nomes do computador, ou se algo mais sinistro está implicado.
           Outra descoberta, esta mais comprometedora para o Ocidente, foi feita na antiga sede de Abdullah al-Senoussi. Nas dependências ora abandonadas, encontraram-se documentos relativos à ligação de espiões americanos e britânicos com o regime de Kaddafi. Nesse contexto, Abdul Hakim Belhaj, membro da cúpula do comando rebelde líbio (NTC) exigiu desculpas dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido por haver sido capturado, torturado e entregue ao ditador Kaddafi. Essa prisão ocorreu em março de 2004. Belhaj pertencia a um grupo islâmico opositor de Kaddafi e tentava asilo no Reino Unido.
           Em ação conjunta a CIA e o MI-6 prenderam Belhaj – e a mulher grávidaem um voo da British Airways na Malásia. Segundo Belhaj, ele ficou sob a ‘custódia’ da CIA, que o torturou e o drogou com um tipo de soro da verdade. Depois do longo ‘interrogatório’ com uma sessão em um conteiner cercado de gelo, ele foi entregue para o líder da Jamairiya, onde ficou confinado e preso por seis anos.
          Não se sabe por quanto tempo essas informações sensíveis ficarão disponíveis a pesquisadores com senso de oportunidade e a necessária coragem. Pela justiça e a história, cabe desejar-lhes boa sorte.


(Fontes: CNN e Folha de S.Paulo)

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