Aquela síndrome satirizada no filme de René Clair, em sua corrida para o passado, que o perene saudosismo do personagem de Michel Simon epitomizava, constitui, na verdade, atitude característica do homem. Essa fuga para ‘os bons, velhos dias’ se acentua nas épocas difíceis, nesses tempos ditos interessantes de que nos falam os chineses.
Tudo trabalha para tornar mais fácil o endeusamento de um mítico ontem, vivido ou não. A névoa do seletivo olvido será o instrumento principal para apagar as manchas, as verrugas e as incertezas de dias e meses e anos suficientemente afastados para que cheguem à lembrança dos pósteros com as cores e os polidos traços da fantasia. Ao reviver o passado, seja pela memória de antepassados, seja por quase-mitos de experiência coletiva, se tende muita vez a montar um quadro que há de privilegiar os aspectos positivos, havidos como emblemáticos, e empurrar para os socavões do subconsciente todas as nódoas e injustiças que desaparecem com a pátina das antigas fotografias.
Sem embargo, esta ânsia de revisitar o tempo pretérito será sempre uma fraqueza do ser humano, máxime quando nos investe aquela sensação de mal-estar (malaise) de que um presidente americano julgara oportuno tratar em fala televisiva para um público perplexo.
Embora a conjuntura tampouco seja favorável além-mar, parece apropriado lançar olhar crítico sobre a sociedade brasileira e, em particular, no mundo político em que esta mesma sociedade tem crescente dificuldade em identificar como seu representante.
Estamos acaso satisfeitos com o nosso Congresso ? Que reações ele nos provoca? Como logramos conviver com esse abstruso corporativismo que, a par de não ser dele exclusivo, o marca tão acintosamente ?
Tenho para mim que Brasília, a meta-síntese do governo de Juscelino Kubitschek, por indispensável que foi, pela complementação da saga dos bandeirantes, trouxe consigo efeitos deletérios que uma série de circunstâncias não permitiu fossem circunscritos e/ou neutralizados.
Retirando o Congresso da velha Corte, e o transpondo para o planalto central, o Executivo criou um conjunto de privilégios – que pensava temporários – para agilizar a transferência e garantir o apoio dos legisladores. Além disso, as duas Câmaras passaram para ambiente politicamente rarefeito, sem o controle da opinião pública que se exercia com a natural cercania dos palácios Tiradentes e Monroe.
O esgarçamento dessa teia invisível, e a silente ajuda de décadas de quase indiferença, da longa noite da ditadura e as suas enganosas dádivas, mescladas com a realidade do tacão militar, e os anos subsequentes, de grandes ilusões e pequenas realizações, todos esses afluentes, presentes e pretéritos, avolumam um curso d’água que desemboca mais em caricatura do que em monstro político.
O Senado e a Câmara se metamorfosearam em criaturas do pântano, em que a atividade sói restrigir-se a um único dia útil de dedicação integral. A despeito de toda a infraestrutura de apoio, a permanência em Brasília se caracteriza pelo seu caráter perfunctório e necessariamente apressado. Chegando na terça e partindo na quinta, o ente político se transmuta em espécie de caixeiro-viajante, sempre assoberbado pela falta de tempo e pela impressão do estar-de-passagem.
Com a falta não-ocasional, mas sistêmica de tempo laboral, as duas assembleias sofreram modificações profundas, que as desfiguraram sobremaneira. O trabalho das comissões se tornou uma ficção, pela necessidade de tudo fazer de afogadilho. Não surpreende,deveras, a lista infinda da desídia congressual, incapaz de atender aos mandamentos da Carta Magna e as inúmeras leis constitucionais que ficam desatendidas.
Se o poder tem horror do vácuo, as invasões decorrentes não serão necessariamente fenômenos positivos e benéficos para o ordenamento da sociedade.
Esse distanciamento dos representantes políticos – que chega ao absurdo da proliferação no Senado da excrescência política dos suplentes, com os mesmos direitos, mas despojados de legitimidade – cria um vácuo institucional, uma espécie de anti-representação, em que pululam os epifenômenos da alienação.
Temos, dessarte, o corporativismo que será talvez a fonte de todas as distorções do comportamento parlamentar. Sem qualquer base última na realidade – ele é uma espécie de teoria da geração espontânea que se esqueceu de explicar a própria criação -, e se espoja nas comissões e no plenário através da sistemática negação do comportamento do Povo Soberano (V. casos de Jacqueline Roriz, os atos secretos, a farra das viagens, a aprovação de projetos pela CCJ em sessões fantasma, o enterro das comissões de ética, e um arrogante, comprometedor e vastíssimo etc.).
Tudo isso talvez nos ajude a entender melhor a disfuncionalidade do Poder Legislativo.
Infelizmente, as consequências disfuncionais desta realidade não se cingem à esfera legiferante.
Exemplo disso o teve a Sociedade, quando, valendo-se de prerrogativa da Constituição Cidadã – as leis de iniciativa popular – logrou fazer aprovar – por unanimidade pelo Congresso – a chamada Lei da Ficha Limpa, a lei complementar nr. 135, que prescrevia um atestado de bons antecedentes para os candidatos à Camara e Senado. Desafortunadamente, esta lei foi colocada no limbo pelo voto de Minerva do novel juiz do Supremo.
Em decorrência desta boa intenção, o Povo brasileiro voltou a ver no Congresso as caras de políticos de ficha-suja. A lição prática da inaudita dificuldade da longa marcha a ser empreendida não poderia ter sido mais explicita e oportuna.
Decerto, não é motivo para esmorecer. Quiçá o seja para a conscientização da necessidade de luta sem quartel, longa, comprida e, sobretudo, sem qualquer ilusão, quanto à realidade da coalizão contrária.