sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Política Disfuncional

                                        
         Aquela síndrome satirizada no filme de René Clair, em sua corrida para o passado, que o perene saudosismo do personagem de Michel Simon epitomizava, constitui, na verdade, atitude característica do homem. Essa fuga para ‘os bons, velhos dias’ se acentua nas épocas difíceis, nesses tempos ditos interessantes de que nos falam os chineses.
         Tudo trabalha para tornar mais fácil o endeusamento de um mítico ontem, vivido ou não. A névoa do seletivo olvido será o instrumento principal para apagar as manchas, as verrugas e as incertezas de dias e meses e anos suficientemente afastados para que cheguem à lembrança dos pósteros com as cores e os polidos traços da fantasia.
          Ao reviver o passado, seja pela memória de antepassados, seja por quase-mitos de experiência coletiva, se tende muita vez a montar um quadro que há de privilegiar os aspectos positivos, havidos como emblemáticos, e empurrar para os socavões do subconsciente todas as nódoas e injustiças que desaparecem com a pátina das antigas fotografias.
         Sem embargo, esta ânsia de revisitar o tempo pretérito será sempre uma fraqueza do ser humano, máxime quando nos investe aquela sensação de mal-estar (malaise) de que um presidente americano julgara oportuno tratar em fala televisiva para um público perplexo.
         Embora a conjuntura tampouco seja favorável além-mar, parece apropriado lançar  olhar crítico sobre a sociedade brasileira e, em particular, no mundo político em que esta mesma sociedade tem crescente dificuldade em identificar como seu representante.
         Estamos acaso satisfeitos com o nosso Congresso ? Que reações ele nos provoca? Como logramos conviver com esse abstruso corporativismo que, a par de não ser dele exclusivo, o marca tão acintosamente ?
         Tenho para mim que Brasília, a meta-síntese do governo de Juscelino Kubitschek, por indispensável que foi, pela complementação da saga dos bandeirantes, trouxe consigo efeitos deletérios que uma série de circunstâncias não permitiu fossem circunscritos e/ou neutralizados.
         Retirando o Congresso da velha Corte, e o transpondo para o planalto central, o Executivo criou um conjunto de privilégios – que pensava temporários – para agilizar a transferência e garantir o apoio dos legisladores. Além disso, as duas Câmaras passaram para ambiente politicamente rarefeito, sem o controle da opinião pública que se exercia com a natural cercania dos palácios Tiradentes e Monroe.
        O esgarçamento dessa teia invisível, e a silente ajuda de décadas de quase indiferença, da longa noite da ditadura  e as suas enganosas dádivas, mescladas com a realidade do tacão militar, e os anos subsequentes, de grandes ilusões e pequenas realizações, todos esses afluentes, presentes e pretéritos, avolumam um curso d’água que desemboca mais em caricatura do que em monstro político.
        O Senado e a Câmara se metamorfosearam em criaturas do pântano, em que a atividade sói restrigir-se a um único dia útil de dedicação integral. A despeito de toda a infraestrutura de apoio, a permanência em Brasília se caracteriza pelo seu caráter perfunctório e necessariamente apressado. Chegando na terça e partindo na quinta, o ente político se transmuta em espécie de caixeiro-viajante, sempre assoberbado pela falta de tempo e pela impressão do estar-de-passagem.
      Com a falta não-ocasional, mas sistêmica de tempo laboral, as duas assembleias sofreram modificações profundas, que as desfiguraram sobremaneira. O trabalho das comissões se tornou uma ficção, pela necessidade de tudo fazer de afogadilho. Não surpreende,deveras, a lista infinda da desídia congressual, incapaz de atender aos mandamentos da Carta Magna e as inúmeras leis constitucionais que ficam desatendidas.
     Se o poder tem horror do vácuo, as invasões decorrentes não serão necessariamente fenômenos positivos e benéficos para o ordenamento da sociedade.
     Esse distanciamento dos representantes políticos – que chega ao absurdo da proliferação no Senado da excrescência política dos suplentes, com os mesmos direitos, mas despojados de legitimidade – cria um vácuo institucional, uma espécie de anti-representação, em que pululam os epifenômenos da alienação.
     Temos, dessarte, o  corporativismo que será talvez a fonte de todas as distorções do comportamento parlamentar. Sem qualquer base última na realidade – ele é uma espécie de teoria da geração espontânea que se esqueceu de explicar a própria criação -, e se espoja nas comissões e no plenário através da sistemática negação do comportamento do Povo Soberano (V. casos de Jacqueline Roriz, os atos secretos, a farra das viagens, a aprovação de projetos pela CCJ em sessões fantasma, o enterro das comissões de ética, e um arrogante, comprometedor e vastíssimo etc.).   
     Tudo isso talvez nos ajude a entender melhor a disfuncionalidade do Poder Legislativo.
     Infelizmente, as consequências disfuncionais desta realidade não se cingem à esfera legiferante.
     Exemplo disso o teve a Sociedade, quando, valendo-se de prerrogativa da Constituição Cidadã – as leis de iniciativa popular – logrou fazer aprovar – por unanimidade pelo Congresso – a chamada Lei da Ficha Limpa, a lei complementar nr. 135, que prescrevia um atestado de bons antecedentes para os candidatos à Camara e Senado. Desafortunadamente, esta lei foi colocada no limbo pelo voto de Minerva do novel juiz do Supremo.
      Em decorrência desta boa intenção, o Povo brasileiro voltou a ver no Congresso as caras de políticos de ficha-suja. A lição prática da inaudita dificuldade da longa marcha a ser empreendida não poderia ter sido mais explicita e oportuna.
      Decerto, não é motivo para esmorecer. Quiçá o seja para a conscientização da necessidade de luta sem quartel, longa,   comprida e, sobretudo, sem qualquer ilusão, quanto à realidade da coalizão contrária.

                                                                              

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Novas do Front Jurídico

                               

Indicação de nomes para o STF

       A revista Veja noticia em seu  número de 21 de setembro corrente que “(A) presidente Dilma Rousseff recebeu o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos para um almoço no Palácio do Alvorada no dia 31 de agosto passado. Amigos desde o governo Lula, do qual foram expoentes  de primeira grandeza, eles conversaram sobre a sucessão da Ministra Ellen Gracie, recém-aposentada do Supremo Tribunal Federal.” Trata-se de reportagem do aludido semanário, sob o título “É Muito Poder”, e que tem o seguinte cabeçalho: “Testemunha de defesa do petista José Dirceu, o ‘chefe da quadrilha do mensalão’, e advogado de um dos envolvidos no caso o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos continua influindo no processo de seleção dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, ele ajuda a escolher aqueles que vão julgar seus amigos e clientes”.
        Mais adiante, a reportagem assinala: “Thomaz Bastos vem assessorando Dilma na definição de substituto de Ellen Gracie. Toma parte de uma decisão que, em última instância, pode beneficiar seus clientes privados e companheiros políticos. Desde julho, o ex-ministro é formalmente advogado do Diretor do Banco Rural José Roberto Salgado, um dos 36 réus do mensalão. Não é a única ligação dele com o processo. Thomaz Bastos também é testemunha de defesa do petista José Dirceu, acusado pelo Ministério Público Federal de comandar  a ‘sofisticada organização criminosa’ que comprava apoio parlamentar para o governo Lula. Como ministro da Justiça, ele tinha acesso a informações privilegiadas sobre o caso. Além disso, é dele a linha mestra da defesa dos mensaleiros, segundo a qual o mensalão não passou de um caso corriqueiro de uso de recursos ‘não contabilizados’ no imortal eufemismo criado por Lula.”
       À vista dos exemplos passados no tratamento dispensado pelo Poder Executivo  às indicações constitucionais para o Supremo Tribunal Federal, a nossa Corte Constitucional, e dado o considerável poder  exercido por cada um dos onze membros com permanência garantida até a idade de aposentadoria compulsória, me tenho perguntado no blog acerca da impressão de relativa displicência na aferição da capacidade, orientação e vida pregressa do candidato ou candidata.
      Comparação perfunctória com a atenção dispensada pelos presidentes dos Estados Unidos na indicação ao Senado dos nove membros da Corte Suprema americana já mostra sobejamente a diferença no exame respectivo. Se não é o caso de imitar a Superpotência nos seus procederes, semelha evidente que nem o tempo e a atenção dedicadas pelo Poder Executivo no Brasil, nem a sessão protocolar que se ocupa da ‘sabatina’ de eventual candidato(a) pelo Senado podem ser comparados com a exação evidenciada ao norte do Rio Grande. A atenção superficial dispensada pelo Executivo pode ter resultados desastrosos. Por outro lado, não há de parte do Legislativo uma participação séria, e a dita sabatina não passa de arremedo pro-forma de uma prerrogativa que deveria ser tomada com maior respeito pela relevância da indicação.
     Quanto à participação do ex-Ministro Thomaz Bastos no processo, as implicações são decerto inquietantes, à luz dos elementos trazidos pela revista Veja.

Bandidos Escondidos Atrás da Toga  


      A observação da corajosa Ministra Eliana Calmon, Corregedora do Conselho Nacional de Justiça, malgrado a tentativa da nota encabeçada pelo Ministro Cezar Peluso, Presidente do STF e, por conseguinte, presidente do CNJ, surtiu o efeito desejado junto à mídia e à sociedade civil.
      Semelha risível o intento de generalizar a sinalização tópica, como se fora irresponsável generalização que ofenderia ‘a idoneidade e a dignidade de todos os magistrados e de todo o Poder Judiciário’.
      Dentro do enfoque corporativista, essa linha de hipertrofiar o alcance da denúncia se afigura bastante previsível. Como a própria imprensa não deixou de explicitar – e a Ministra o assinalou  - não é imputação contra a instituição, mas sim contra uma ínfima minoria de casos específicos de magistrados comprovadamente envolvidos em irregularidades. Por isso, Eliana Calmon disse: “Acho que houve uma reação desproporcional do Conselho.”
     A A.D.I. (ação direta de inconstitucionalidade) estava em pauta, mas diante da reação  generalizada de opinião pública e mídia, o presidente do Supremo, Ministro Cezar Peluso optou pelo adiamento, aduzindo que “a posição do STF não estava sendo compreendida pela mídia e o momento não era propício para o julgamento.”
     O Ministro Marco Aurélio Mello, que é o relator, declarou que “(A) nossa corregedora cometeu um pecadilho, mas também não merece a excomunhão maior. Ela tem uma bagagem de bons serviços prestados à sociedade brasileira. É uma juíza de carreira, respeitada. Uma crítica exacerbada ao que ela versou, fragiliza o próprio Judiciário e o próprio Conselho.”
     O Ministro Gilmar Mendes – que teve boa atuação quando chefe do CNJ – observou: “A ministra está muito estimulada por seu trabalho. Quem lida com os problemas concretos certamente se empolga e quer resolvê-los. Não vejo com bons olhos essa tensão entre a Corregedoria e os outros órgãos. A Corregedoria do CNJ tem de acionar a corregedoria dos tribunais e estimulá-la.”
      Essa trégua jurídica, adotada sob pressão pelo Presidente Peluso, não deve dar falsas impressões de súbitas reviravoltas. Peluso, enquanto presidente do STF e do CNJ, há de voltar à carga, cuidando valer-se do suposto viés favorável do colegiado para esvaziar o CNJ, abrindo caminho para que o Conselho só examine denúncias já julgadas pelas corregedorias locais.
      Tal condicionamento equivaleria a emascular o CNJ, pela comprovada tendência das corregedorias dos tribunais a não perseguirem os abusos e a corrupção, por condicionamentos corporativistas. Como a condição para acionar o CNJ não se verificaria, teríamos a transformação do dito Conselho em uma desdentada academia.


Despertar no Senado   


       Sob o acicate da crise no CNJ, o Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) apresentou proposta de emenda constitucional (PEC) reforçando as competências do CNJ.  Nesse sentido, o Senador Demóstenes decidiu explicitar no texto da PEC que cabe ao CNJ “processar e julgar, de ofício ou mediante provocação de qualquer pessoa, faltas disciplinares praticadas por membros ou órgãos do Poder Judiciário e auxiliares da Justiça”.
       Dada a aprovação da PEC anterior – que ora se acha na Câmara e que pode contribuir para o esvaziamento do CNJ – semelha de toda oportunidade a iniciativa do Senado.
       Nesse campo de atuação do CNJ há muito o que fazer. Desperta, a propósito, estranheza que julgamentos do CNJ sejam suspensos por meio de liminares de Ministros singulares do STF, como verificado em mais de um caso. A esse respeito, é outra questão que deveria ser resolvida, eis que a circunstância de o CNJ ser presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal não deveria expô-lo a tais contratempos procedimentais, que, na prática, tem mantido em suspenso diversas condenações.


( Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo )  

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O CNJ na berlinda

                                        
      Nesta quarta-feira, 28 de setembro,  está aprazada sessão do Supremo Tribunal Federal para julgar ação da Associação dos Magistrados do Brasil que mais uma vez contesta o poder de punição do CNJ. Em 2005, a mesma AMB tentara contestar a constitucionalidae do Conselho Nacional de Justiça. Na época, o Supremo deu ganho de causa ao CNJ.
      Acreditando soprarem outros ventos – em 2005 o Judiciário enfrentava vários escândalos, entre os quais o do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto – a AMB impetra Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Conselho.
      Pensando que a atmosfera ora lhe favorece, o que se definirá, uma vez mais, é se o CNJ terá condições de continuar a lidar com os desvios no Judiciário ou se tornará órgão decorativo, despojado dos poderes que tanto parecem incomodar a chefia da Associação de Magistrados.
      Não é a primeira vez que este blog se ocupa do tema. A Sociedade Civil é devedora deste momento revelador – concretizado pela sessão hodierna do STF – a uma mulher, que pela coragem e resolução muito já fez para dissipar as brumas que em geral encobrem os trabalhos da Justiça.
      A Sociedade é também devedora à Corregedora do Conselho Nacional de Justiça,  ministra Eliana Calmon, por expor relevante questão, sem envolvê-la nos panos de linguagem esotérica, como costuma ser vezo das corporações.
      Sem meias palavras, Eliana Calmon resolveu avançar nos seus esclarecimentos, dando continuidade ao que já referira anteriormente (V. Colcha de Retalhos XCI, A Estranha Emenda). Dessarte, reduzir as competências do CNJ, proibindo-o de investigar e punir magistrados antes que os próprios tribunais estaduais o façam, é “o primeiro caminho para a impunidade da magistratura, que hoje está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos escondidos atrás da toga”.
     A Corregedora Calmon segue a orientação de seu predecessor, o Corregedor Gilson Dipp, e dá nome aos bois, não  camuflando os inculpados sob discretas iniciais.
      Tornando a ênfase mais afirmativa, a ministra Calmon contribuiu para desvelar sem rebuços quem está à frente de campanha para transformar o CNJ em uma desdentada academia, sem os poderes que lhe foram atribuídos por emenda constitucional, e confirmados por sentença do STF de 2005.
     De novo, o corporativismo alça a cabeça, no intento de emascular o CNJ. A proposta de emenda constitucional (PEC) apresentada pelo Presidente do Supremo, Ministro Cezar Peluso, já ignaramente aprovada pelo Senado, ora se encaminha para a Câmara. A advertência da Corregedora, a que me referi a 18 de setembro, agora se torna mais incisiva, desnudando a crua ameaça à reforma constitucional do controle externo da magistratura.
     Diante da ação da Ministra, o presidente do STF e do CNJ, Cezar Peluso, descobre, se necessário fora, a respectiva posição. Intentou de início forçá-la a uma retratação. Para sua honra, Eliana Calmon se recusou a fazê-lo. A nota do CNJ, assinada pelo Presidente Peluso e pelos demais Conselheiros presentes, não teve a firma nem da Corregedora, nem de dois Conselheiros ausentes.
      Com efeito, a nota oficial, ao dizer que as declarações da Corregedora “de forma generalizada ofendem a idoneidade e a dignidade de todos os magistrados e de todo o Poder Judiciário”,  estende para uma coletividade uma denúncia tópica e determinada, e nas palavras de Fernando de Barros e Silva “endossa o teatro da dignidade abalada do Judiciário e faz o jogo do obscurantismo”.
     De certa forma, é bom e oportuno que assim seja. As boas causas não carecem de trazer o gesto embuçado, como se a Justiça, além de cega, devesse igualmente dissimular-se na sombra.
     Bem o fez a Ministra Calmon ao rasgar o véu das falsas conveniências do corporativismo. Hoje, mais uma vez o palco se descerra para que continue esta longa, árdua  e comprida caminhada em prol da justiça, sem os sólitos adjetivos, nem os sovados disfarces de sempre.
     Pela incúria do Executivo que, por vezes, delega na prática muito da responsabilidade  a consultores não-isentos de fundada suspicácia, e trata a indicação de nomes ao Supremo como se representasse  mera, aborrecida formalidade, ou ensejo de premiar discutíveis méritos, à custa do Povo Soberano, amiúde nos deparamos com colegiado que deveria melhor espelhar o sentir da Sociedade e  seus lídimos anseios de  autêntica Justiça.
      A eterna vigilância semelha atributo indispensável para uma aturada defesa de  sociedade realmente democrática, em que a igualdade dos cidadãos não seja apenas a cláusula pétrea, na qual se empilhem muitas ocas citações, sem o vívido traço da aplicação abrangente, diuturna e inabalável.


( Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo )       

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Desta Vez Será Diferente ?

                                   

        Essa estranha aposta, que tem norteado a todas as crises do capitalismo, desde a degringolada do sistema de Mr. Law, na regência de Philippe d’Orléans (século XVIII), pelo visto não se aplica apenas ao mercado financeiro e a seus planos irresponsáveis, como o da recente crise de 2008, que estourou com a falência do Banco Lehman Brothers, e todas as consequências que temos bem presentes na memória.
       No panelão das bolsas e do nervoso mercado -  esse enorme vulto, que não tem identidade nem domicílio, mas parece ter vontade e caprichos próprios – se cozem a dívida grega e a perspectiva de outro inexorável calote. A origem das bancarrotas, se possui  um marco zero conhecido, costuma transformar-se em buraco negro, de mil bocas e cumplicidades, cuja súbita insaciabilidade sinaliza tempestades e desgraças desproporcionais aos seus acanhados e esquálidos princípios.
      Nessa hora de ritual tomada de contas, exposto o tecido esgarçado dos ativos podres e das carteiras dos sólidos bancos de repente fragilizadas, será o momento da verdade, triste verdade que traz com ela tanta miséria e sofrimento, cruelmente distribuídos entre ricos e pobres, pequenos e grandes.
      A Presidente Dilma Rousseff, em seu celebrado discurso de abertura da Assembleia Geral, declarou que a resistência do Brasil à crise não é ilimitada. Deus e ela sabem o que jaz no bojo dessa algo obscura frase. Presume-se que seja advertência importante, mas o segredo é a alma do negócio.
      De toda maneira, pairam no rarefeito ar das alturas do poder intenções e propósitos que são suscetíveis de provocar mais estragos do que as inquietudes que pretendem dissipar.
      A despeito do corte inesperado dos juros pelo Copom, e da anunciada e oficial previsão de queda da inflação, os sacrifícios perante o deus Baal não surtiram o efeito augurado.
      A Chefe do Governo não tem a intenção, contudo, de renunciar aos seus princípios desinvolvimentistas. Em meio a  nova crise internacional – com todas as suas sequelas de baixa na procura e consequente queda nas cotações das commodities (passam as décadas e continuamos a depender das matérias primas, que são o canário[1] das crises internacionais) – as ordens para o exército econômico determinam que se vá em frente. Para tanto, o Banco Central – cuja autonomia se tornou apenas um retrato na parede – deve baixar mais a taxa Selic, para o indispensável estímulo ao consumo.
      A falange dilmista avança contra um inimigo solerte, mas, não importa, porque desta vez vai ser diferente ! Malgrado a crise que ronda como os antigos mouros as nossas costas, o governo deve privilegiar o crescimento, e ignorar o perigo de alimentar ainda mais o dragão – cuja força já é prevista para estourar a meta projetada pela autoridade econômico-financeira.
        Em um cenário similar, mas não de todo, no governo Lula, se reforçara a tendência à carestia, por mascarar-se as altas nas cotações como se fossem efeitos sazonais e, portanto, efêmeros. Com todo o arsenal que o Brasil herdou em termos de instrumentos de preservação da chama inflacionária – que são os inúmeros índices – não há de estranhar que a alta dos preços se torne criatura de controle muito mais dificultoso do que em outras plagas – que não passaram pela hiper-inflação, nem possuem a propensão a essa cultura de cobiça burra posto que persistente.
        Será que esse surto irresponsável de greves, não acende nenhuma luz nos gabinetes do Planalto ? Vejam, companheiros, que a dos correios  -  estender-se por catorze dias como se fora algo desimportante que pode apodrecer sem maior prejuízo  sócio-econômico – se junta outra, a dos bancos, lançada com pompa e circunstância na data hodierna, para atazanar a sociedade, na respeitável ânsia de partir logo para os finalmente. Porque  têm pressa, pedem a compreensão do público. Se se transforma a greve não em arma de última instância, mas em recurso corriqueiro, de uso imediato, estamos trazendo outros espíritos para fora do frasco.
        Não importa ! Pelo desenvolvimentismo, desmontemos o tripé anti-inflacionário. Saudemos os companheiros em greve ! Se no passado tudo acabou em pântano estagnado, desta vez, vai ser diferente !



( Fonte:  O  Globo )       



[1] O canário era levado pelos antigos mineiros quando adentravam as minas. A sua súbita morte era o sinal de gases letais, e do perigo extremo que apontava para a necessidade imediata de abandono do local.  

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Comissão da Verdade ?

   
        Em sua coluna semanal, sob o título Longe da Verdade, Ricardo Noblat escreve dos óbices para o funcionamento da chamada ‘Comissão da Verdade’.
       As dificuldades que Noblat aponta são reais. Permito-me, no entanto, acrescentar mais uma, qual seja a premissa a que se condicionam todas as questões relativas ao enquadramento latu sensu das forças armadas sob o controle do poder civil.
       No Brasil, a terra do jeitinho, esta premissa não se aplica.    
       Apontemos, de início, os sintomas dessa perturbadora ausência.
      Em nosso país, há uma relação de temor quase reverencial da sociedade civil perante o poder castrense. Esse caráter timorato se reflete na sobrevivência de institutos que inexistem em países vizinhos, notadamente a Argentina, como, v.g., a permanência de uma justiça militar. Encastelada na Constituição de 5 de outubro de 1988, tal justiça, abolida na Argentina e no próprio Chile, tem aqui nível de tribunal superior, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal.
      Ao contrário de autoridades como o Presidente Raul Alfonsin, em países em que o estamento militar exercera o mando com violência ainda maior do que a praticada por nossos generais-presidentes, e que não pediram licença para que os responsáveis, em todos os níveis, respondessem por seus crimes, o poder constitucional no Brasil trata o estamento militar com estranha deferência.
     Essa peculiar característica é partilhada pelos políticos brasileiros em geral. A menção feita por Noblat ao temor do Presidente Lula – que estaria na raiz da condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, por não haver investigado os crimes praticados durante a ditadura militar (1964-1985) – se me afigura injusta.  Lula é apenas um exemplo das excessivas atenções – que outros chamariam subserviência – do poder constituído à farda, como deparamos, v.g., igualmente no seu antecessor Fernando Henrique, que consumiu interminável espaço de tempo para criar, a partir do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), o que seria o Ministério da Defesa.
     No Brasil, são extremamente raros os políticos que têm consciência da autoridade do poder civil, que lhes é atribuída pelo voto da cidadania. Citaria apenas dois dentre nossos presidentes: Epitácio Pessoa e Getúlio Vargas. Diga-se, outrossim, a respeito desses dois estadistas, que no seu tempo não havia a rede consuetudinária que hoje, na prática, inviabiliza os golpes militares.
     O poder civil, a começar pela sua máxima autoridade, se deveria primeiro respeitar, para que em seguida exerça, na sua plenitude republicana, as inerentes atribuições, inclusive a de se fazer respeitar, pela implementação de suas prerrogativas constitucionais e legais, de todos os respectivos subordinados.
    Não há poderes diferenciados na República, nem a outorga de privilégios que não estejam fundados na letra da lei.
    Essa índole timorata do poder civil será um fator cultural, mas Fernando Henrique Cardoso, que experimentou o exílio, e Luiz Inácio Lula da Silva, que padeceu a prisão, tinham amplas condições de transcender esse impedimento, como o fizeram os seus homólogos argentinos.
       A Presidente Dilma Rousseff será talvez a pessoa indicada para essa tarefa propedêutica para a sociedade. Chefe de Estado eleita pelo colégio soberano da Nação brasileira não negocia com subordinados, nem pede licença a quem quer que seja, para cumprir com os seus deveres constitucionais.
       Mais do que qualquer outro, Dilma Rousseff aprendeu a dura lição que a falta de respeito com a atenção ao exercício irrestrito, mas dentro da lei, das respectivas prerrogativas terá condicionado o poder civil lato sensu a curvar-se diante dos reiterados excessos de condestáveis e de sua tropa.
      O Brasil carece de superar – e o quanto antes, melhor – esta capitis deminutio, que faz nossas instituições republicanas agirem como se estivessem sob a sombra de ameaça discricionária. Precisamos entrar no século XXI, mêmores de que não há espaço para absurdos como negar a imprescritibilidade da tortura – um crime contra a Humanidade, como ainda o fez a maioria de nossa Corte Suprema. Nem tampouco todas essas mesuras incôngruas e vexatórias, como se ao lado agressor fossem devidas todas as atenções.
     Presidenta, nomeie gente digna e equânime para a Comissão, no pressuposto de que a sua força inercial, baseada na justiça e na equidade, se sobreporá aos débeis intentos dos fâmulos da ditadura e seus descendentes de buscar ocultar aquilo que deve brilhar na luz da verdade, na homenagem devida às vítimas caídas pelos desmandos de um passado ainda recente.
 

( Fonte:  O Globo )   

      

domingo, 25 de setembro de 2011

Dois Fantasmas Desafiam a Câmara

                           
A Sessão fantasma da CCJ

          O Globo trouxe a público que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados procedeu na quinta-feira, 22 de setembro, à aprovação de 118 projetos, em três minutos,  com a presença de apenas um deputado no plenário da Comissão,  Luiz Couto (PT-PB), e sob a presidência de Cesar Colnago (PSDB-ES). A pouco edificante cena foi documentada pelo celular de repórter do jornal.
        O vídeo, disponível no site de O Globo, mostra que os dois deputados, durante o arremedo de sessão, debochavam da situação.
        Há vários aspectos que merecem ser ressaltados. Esse chancelar de projetos, de afogadilho, é um simulacro de o que deveria ser o trabalho da comissão, que é havida como a mais importante da Câmara.
        De forma simbólica, porém veraz, ali estava representada a oposição (PSDB) e a situação (PT), e Suas Excelências não evidenciaram nenhum mal-estar em pontificarem o episódio. Contavam para tanto com a concordância do presidente da CCJ, deputado João Paulo Cunha (PT-SP), que é também, como se sabe, um dos réus do processo do mensalão
        Não é apenas o reduzido apreço manifestado pelos deputados, e o achincalhe da maneira pela qual se efetuou a suposta aprovação pela Comissão de 118 projetos de lei. Qual o valor intrínseco atribuído a essa função precípua da CCJ – a determinação da constitucionalidade dos projetos ali tramitados – se ela é feita de afogadilho, de maneira desrespeitosa, que escarnece da seriedade do trabalho realizado.
       Os dois deputados não se dão conta de que o seu deboche se volta contra eles.
Estará presente na memória de muitos a dançinha da pizza, pela deputada Angela Guadagnin (PT-SP), na comemoração da não-cassação do deputado João Magno. A deputada, por sua falta de decoro, foi castigada no tribunal da opinião pública, ao lhe ser negada a reeleição.
      A patacoada encenada por esses dois deputados é consequência de  situação deplorável e vergonhosa, a qual sem embargo permanece como afronta ao eleitorado por uma série de legislaturas. Reporto-me à desídia dos senhores parlamentares, como semana laboral com apenas um dia completo (a quarta-feira). A quinta-feira – o dia do tal simulacro de aprovação pela CCJ – é o dia da partida, e a terça, o da chegada.
      Compreende-se, em tal quadro, o porquê do atraso sistêmico do Congresso na elaboração, avaliação e aprovação dos projetos. Tudo é feito de forma superficial, às carreiras e, o que se afigura muito pior, de modo lacunoso e insatisfatório, dada a impossibilidade de cumprir com as suas atribuições de forma correta. Não é difícil imaginar como esse vácuo legislativo acaba sendo preenchido por outros órgãos, com o incremento exponencial das MPs consubstanciando a intromissão do Executivo e a chamada  judicialização pelo Judiciário o vem sobejamente demonstrando.


O Projeto Fantasma contra o  CNJ

        Aprovado em surdina pelo Senado Federal, a PEC de autoria do  Ministro Cezar Peluso, ora se encaminha para a Câmara Federal.
       Divulgada como um projeto de emenda constitucional (PEC) que se propõe regular o excesso de recursos, com vistas a minorar a carga aos juízes, a iniciativa do Presidente Peluso colheu simpatias por contribuir para a agilização do procedimento judicial. Se mereceu comprensíveis reservas dos advogados, a sua recepção, máxime no judiciário, foi positiva.
       No entanto, não tenciono ocupar-me dessa vertente da PEC do Ministro Peluso. Embutido na proposta, veio igualmente projeto de ‘reforma’ do CNJ. Segundo declarações da Corregedora Nacional  de Justiça Eliana Calmon (V. blog Colcha de Retalhos XCI, A Estranha emenda), pretende-se retirar “do Conselho Nacional de Justiça a prerrogativa de julgar a perda de cargo dos magistrados” e repassar  para os próprios tribunais a responsabilidade de decidir sobre a demissão ou não dos magistrados”.
        Segundo assinala Fernando de Barros e Silva, da Folha, a Corregedora “já é asfixiada por uma gestão que a alijou de todas as comissões do CNJ”. O Corregedor Gilson Dipp, o antecessor da Ministra Calmon, tivera em seu mandato o apoio do então presidente do CNJ (e do STF), Ministro Gilmar Mendes. Tal não semelha ser o caso da atual Corregedora. Forçada a ventilar junto à opinião pública este estranho desígnio, o fez de forma discreta, sem menção explícita àquele que se propõe a esvaziar o CNJ.
        Sem embargo, questão de tanta  importância não pode ser tratada dessa  maneira, em que uma conquista da sociedade, alcançada depois de longa luta, venha a ser anulada, de forma ousada, e com o aparente intuito corporativista de reexumar a situação anterior.
        Tal iniciativa, sem qualquer debate ou informação à sociedade, pretende sepultar recente conquista de um engatinhante controle externo da magistradura.
        O mais estarrecedor de todo o projeto é que o seu autor seja o  Presidente de turno do Supremo Tribunal Federal, o qual assume, ex vi de tal situação, as funções de presidente do Conselho Nacional de Justiça. Sem embargo de tal responsabilidade – que foi atribuída ao STF como parte da negociação para a implementação do citado controle externo no Brasil  - Sua Excelência não vê impedimento de tramitar proposta de emenda constitucional que esvazia o CNJ de suas principais funções, ao proibi-lo de investigar e punir juízes corruptos.  
        Essa proposta deletéria e regressiva foi aprovada pelo Senado Federal, sem qualquer discussão pela sociedade dessa emasculação do CNJ. Na prática, a emenda constitucional que instituíra o Conselho se torna irrelevante, em um retrocesso que merece ser repudiado pela opinião pública.
        Não se pode permitir que essa contrarreforma seja aprovada, sob um   peculiar e áulico silêncio. O intento de restabelecer-se o compadrio e o corporativismo para proteger os maus juízes precisa ser combatido e repelido.
        Somente a ampla e irrestrita denúncia – e não o conivente silêncio – hão de proporcionar a pública discussão e o exame rigoroso da matéria, para estabelecer, mais uma vez, qual é o real interesse da sociedade, e o que carece  ser feito.  
        Mandemos para a gaveta a PEC do senhor Peluso, no que tange à tentativa de esvaziar o CNJ.  Incumbe a nós como cidadãos dizer Não ao projeto-fantasma, a esse desígnio de fazer regredir o Judiciário ao velho regaço do corporativismo.
        Mais do que tudo, impõe-se dizer Não à convivência com a impunidade como regra de conduta.



( Fontes:  O Globo, Folha de S. Paulo )

sábado, 24 de setembro de 2011

Confronto na Assembleia das Nações

                            
       A primeira assembleia se reúne desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A cada ano, em setembro, se inicia nova sessão. A atual tem o número 66º , e o seu debate geral, reservado aos chefes das delegações acreditadas,  foi aberto, como  de praxe, pela representação do Brasil, um dos Estados fundadores, e no seu mais alto nível, i.e., pela Presidente da República Dilma Rousseff.
      Ontem esta discussão ampla abrangeu duas alocuções que se referem à questão de que as Nações Unidas se ocupam desde os seus primeiros anos.
      Com efeito, sob a presidência de um brasileiro, Oswaldo Aranha, a Assembleia Geral aprovou em 29 de novembro de 1947, a Resolução 181, por 33 votos a favor e treze contra, que determinou a partilha da antiga Palestina em estados israelense e palestino.
      Em comunidade internacional, que refletia a permanência do colonialismo – os países-membros das Nações Unidas então votantes somam 46 nações – e, portanto, ainda dominada pelo Ocidente, a criação do Estado de Israel, dando sequência ao movimento encetado pela Declaração Balfour de 1917, o sionismo e a chaga do Holocausto, foi contestada pela nação árabe.
     Sem embargo, a falta de unidade e coordenação dos exércitos árabes que participaram da guerra de independência de Israel, contraposta ao preparo da força israelense levaria à primeira derrota árabe.
     A declaração de independência de Israel – concomitante ao fim do mandato da Grã-Bretanha – é de quinze de maio de 1948.
     A esta data se associa  o que os palestinos e o mundo árabe denominam al-Nakba (a catástrofe). O drama da histórica Palestina se agrava a partir de então, com a expulsão e a chamada ‘limpeza étnica’ de um grande número de palestinos residentes em área de que as forças de Israel se apropriaram, recorrendo da eliminação física à intimidação. Os contingentes palestinos que até hoje vagam em países árabes, por que escorraçados de sua terra natal, se formaram a partir desses dias trágicos para a nação de que Arafat seria no futuro o representante símbolo.
     Não é intenção deste blog relatar esse longo conflito que até hoje, a despeito de tentativas várias, algumas bem-intencionadas, não está resolvido. E, sem embargo, o duelo que contrapôs os discursos na recém-inaugurada Assembleia Geral é a um tempo representativo da progressiva degenerescência do conflito étnico e da sempre reavivada esperança em uma solução digna e equânime para dois povos que, no passado, haviam sabido coexistir.
     Não obstante as mútuas recriminações e as oportunidades perdidas – e não há maior delas que os Acordos de Oslo, por força da ingenuidade dos negociadores palestinos, e o seu iterado desvirtuamento pelos assentamentos dos colonos – o triunfo da chamada Guerra dos Seis Dias trouxe consigo a camisa de Nesso da inviabilização de justa e verdadeira solução da questão médio-oriental.
     Por um conjunto de fatores, as soluções internacionais por resoluções do Conselho de Segurança se tornaram letra morta. Agravou-se o estranho fenômeno de um estado cliente dominar politicamente o seu protetor, por um conjuntos de precedentes, fraquezas e idiossincrasias eleitorais. O progressivo e na aparência inelutável isolamento de Israel se espelha na atual suposta aliança com os Estados Unidos. Depois de Lyndon Johnson nenhum presidente americano pode politicamente contrapor-se à liderança israelense, que ora dispõe de apoio legislativo a estender-se muito além do estado de Nova York. O próprio Benjamin Netanyahu o demonstrou, pelo apoio recebido dos dois partidos americanos na última tentativa de Barack Obama de relativizar essa incondicional manifestação de cega sustentação.
     Yitzhak Rabin e Shimon Peres tinham assinado, no gramado da Casa Branca, com Yasser Arafat os Acordos de Oslo. A extrema-direita israelense cuidaria, por mão assassina, de afastar Rabin. E depois de Sharon e de suas provocações, a resposta da sociedade israelense tem caminhado sempre mais, sob o látego dos colonos e de suas perenes invasões de terra palestina, para uma direita exacerbada, isolada e sem saída racional.
    Constitui mais do que trágica, na realidade cruel e farsesca ironia, a ‘solução’ perseguida pelo estamento dominante israelense de bantustanização e de discriminação – de que não há maior e mais gritante símbolo do que mais este muro erigido pela vã ilusão de que pode separar e impor a injustiça. O mais superficial conhecimento do passado há de indicar o baldado dessas tentativas, votadas a se transformarem em patéticos monumentos de fase decadente do imperialismo.
    Precedidos pelo discurso do presidente Barack Obama – que, por circunstâncias já aludidas acima constitui um componente necessário, posto que secundário do problema médio-oriental – subiram ontem à tribuna das Nações Unidas Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel.
    O moderado Mahmoud Abbas, sem o carisma de Yasser Arafat, mostrou inédita determinação ao insistir em defender o direito palestino à soberania. “Creio que ninguém com um vestígio de consciência pode rejeitar nosso pedido por admissão plena nas Nações Unidas. A soberania é a realização dos direitos inalienáveis do povo Palestino.”  À  alocução ouviram não só os dignitários diplomáticos do Grande Salão. Na sua terra natal, em Ramallah – que assistira ao pré-martírio de Arafat, cuja morte clama por esclarecimento – e nos demais territórios que restaram à nação palestina, a fala foi acompanhada com emoção e participação pela sua gente.
    O maior e geral aplauso veio quando Abbas mostrou cópia da carta que acabara de entregar ao Secretário-Geral Ban Ki-moon, solicitando a participação plena na Organização. “É chegado o tempo”, disse ele sob grande ovação.  
   A ênfase nas negociações prévias da paz é uma falsa condição, desmentida pela iterada negativa das lideranças israelenses de um válido e equilibrado acordo com a nação palestina. Não foi por acaso que Abbas em seu discurso criticou os assentamentos israelenses. Tudo ignorando, se sobrepondo aos princípios do direito das gentes e dos limites antecedentes entre os dois povos, uma conjunção de inconfessos interesses vem prevalecendo, em arrogante desrespeito e mesmo escárnio de qualquer precedente – os colonos, na verdade, são o governo, e não só  um ministro do exterior, que está mais interessado no interior, senão no próprio Netanyahu, cuja participação sempre defendeu o statu quo, que no caso israelense tem a estranha e antinômica característica de mover-se continuamente em desfavor da parte supostamente mais fraca.
    Abbas escolheu para encaminhar a solução palestina bater à porta do Conselho de Segurança. Dispõe até o momento de seis países, entre os quais, para sua honra, o Brasil. Careceria de nove, para apresentar a Resolução. Se lograr o apoio de mais três,o que, submetido às pressões de Washington, é possível mas improvável, um ulterior passo terá sido dado na construção do tão ansiado ‘momento da verdade’ palestino.
    Será chegada – nessa vigésima-quinta hora do drama da sofrida nação – outra hora da verdade. Se os Estados Unidos recorrerem ao veto, mais um limite terá sido ultrapassado.
    Toda a injustiça tem dentro dela a raiz de sua própria nêmesis. Desde muito, o patente desequilíbrio no encaminhamento e avaliação da questão palestina tem gerado não só desconforto e animosidade, senão ódio e terrorismo.
    Por quanto tempo o mundo ainda será refém de uma injustiça, da incapacidade dos protagonistas de resolvê-la, e da omissão maior de autoridades que estão demasiado conscientes do caráter perverso do dilema, mas não reúnem a resolução indispensável para cortar esse Nó Górdio ?




( Fontes: International Herald Tribune, Folha de S. Paulo ) 

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Notícias do Front (XVI)

                             

O Fed contraria republicanos

       A maioria dos diretores do Federal Reserve Bank, sob a liderança de Ben Bernanke, aprovou plano para tentar retirar a economia estadunidense da estagnação em que se encontra.
       Assinale-se que, de acordo com a sua atual postura do agressivo reacionarismo,  a liderança republicana no Congresso dirigiu carta ao Presidente do Fed em que o adverte contra novas medidas. Nesse sentido, juntando-se à ameaça anterior do governador do Texas, Rick Perry, que está na frente das pesquisas para a candidatura à Casa Branca, o Speaker John Boehner e o líder da minoria no Senado, Mitch McConnell sinalizam que têm “sérias preocupações em que ulterior intervenção pela Reserva Federal possa exacerbar os problemas correntes ou prejudicar ainda mais a economia estadunidense”.
      Patenteando uma vez mais a visão regressiva do GOP, que se acha a reboque da facção do Tea Party, o Partido Republicano julga que incentivar o consumo pode ser perigoso para a economia americana. O GOP, ao repetir erros do passado, parece querer aprofundar a atual crise econômica, ao se opor a medidas bastante moderados do Fed. Nesse contexto, o deputado Barney Frank, de Massachusetts, o principal representante da minoria democrata na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados, considera que a direção do Banco Central americano deveria ser menos cautelosa.
      O que será implementado pelo Federal Reserve ?  Para estimular o crescimento econômico, o Fed comprará $ 400 bilhões em obrigações do Tesouro de longo prazo, com o produto da venda de títulos de curto prazo da dívida do governo.
     Como justificativa de sua ação, aduziu o banco central: “O crescimento continua lento. Indicadores recentes apontam para continuada debilidade nas condições gerais do mercado laboral, assim como o nível do desemprego permanece elevado.”
     Com a iniciativa se pretende reduzir o custo dos empréstimos para empresas e consumidores, inclusive em financiamentos hipotecários.
      Sob a motivação  de que tais medidas de estímulo possam ser inflacionárias, três membros do comitê diretivo do Fed se dissociaram da resolução majoritária. Privilegiar o temor inflacionário diante de um viés recessivo da economia é desconhecer todas as lições keynesianas da economia e todos os erros cometidos na luta contra a Grande Depressão.
      A exemplo do que preconiza Paul Krugman, não recorrer a uma política pró-ativa em termos de estímulos para  economia estagnada equivale a condená-la à perspectiva de nova recessão, mormente diante da nova crise europeia.
      No atual quadro americano, será mesmo que o GOP tem um enfoque tão pouco inteligente em matéria econômica, ou estará trabalhando com a velha tese do quanto pior  melhor, vale dizer, a história trabalha contra a reeleição de presidentes em períodos de recessão ? E com a ajuda do próprio Barack Obama -  se este persistir em não assumir o papel presidencial de líder – a crise econômica não lhes traria o tão desejado presente de um republicano de novo na Casa Branca ?


O Discurso de Dilma Rousseff


      Fala-se muito na prerrogativa do Brasil de abrir os trabalhos da Assembleia Geral das Nações Unidas. E agora na circunstância de que, por primeira vez, a sessão deste ano foi inaugurada por uma mulher.
     Sem querer desmerecer da efeméride, cabe fazer algumas observações sobre o real significado de tais precedentes. Por tradição – e pela circunstância de que a nossa representação estava dentre as fundadoras das Nações Unidas, no cenário de Lake Success, em número bastante mais reduzido do que o atual – o Itamaraty tem cuidado de que a nossa inscrição seja feita de molde a que não se quebre a tradição.
    Através dos decênios, a princípio o discurso inaugural seria pronunciado ou pelo embaixador-chefe da missão permanente junto às Nações Unidas, ou, com o decorrer do tempo, pelo Ministro das Relações Exteriores.
    Em passado recente, a atração da ribalta internacional trouxe ao grande salão da Assembleia Geral a presença do Presidente da República em funções. Fernando Henrique não terá desdenhado dessa oportunidade, mas a garantia da presença nas seguidas assembleias gerais foi assumida pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo seu natural protagonismo.
    Anteriormente, dentre as línguas utilizadas, os oradores da abertura privilegiaram o inglês, a atual lingua franca mundial. Lula,  por nacionalismo,  optou pelo português.
    Há cinco línguas oficiais nas Nações Unidas: inglês, francês, espanhol, russo e chinês. Todo o representante nacional tem o direito de se servir de uma destas, mas se deseja, em ambiente de grupo de trabalho (onde não há intérpretes), ter alguma participação negociadora, será aconselhável que empregue o inglês, único idioma por todos praticado.
     Na tribuna da Assembleia Geral cada país está autorizado a valer-se do próprio idioma. Se não servir-se de uma das línguas oficiais, contudo,  seu discurso deverá ser apresentado com antecedência ao secretariado, para a tradução competente.
      Segundo estou informado,  a Presidenta Dilma é fluente em inglês. Como ouvimos, no entanto, preferiu aqui seguir o exemplo do antecessor. É um direito que lhe assiste, mas se se deseja maior participação das delegações presentes à sessão inaugural, não será este o conduto mais adequado.
    Por outro lado, igualmente em função da tradição, se sucede no mesmo dia da alocução do chefe da delegação brasileira, o discurso do Presidente dos Estados Unidos da América. A Superpotência talvez não luza com o brilho resplendente da ascendência que se seguiu ao desfazimento da União Soviética, mas ainda recebe atenção desproporcional àqueles que ascendem ao pódio das Nações Unidas.
    Será,portanto, compreensível que a imprensa brasileira dispense amplas colunas no seu espaço jornalístico para as palavras da Presidenta. Sem embargo, a respectiva  menção na mídia americana e internacional – se comparada com as transcrições e comentários reservados ao discurso do Presidente dos Estados Unidos da América não terá nem sombra do realce obtido na própria terra. É uma consequência natural das intervenções em apreço, e não implica em desdouro.
     A única característica permanente dessa sucessão de discursos, e das recepções diferenciadas, não nos deve, nem considerar como se fora capitis diminutio, nem papaguear a linguagem dos áulicos, emprestando à alocução em terra estrangeira a assinalada retumbância em campos brasílicos.



( Fontes : International Herald Tribune, Folha de S.Paulo )  

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

STJ anula provas contra Filho de Sarney

                     
        Segundo noticia o Estado de São Paulo, o processo de anulação das provas da Operação Boi Barrica levou apenas seis dias para ser relatado no Superior Tribunal de Justiça. Foi julgado pela 6ª Turma do STJ em uma única sessão. E para completar o quorum e viabilizar o julgamento, dois juízes tiveram de ser convocados.
       Cotejando com outros casos importantes, a mesma Turma levara dois anos para julgar o processo contra a operação Castelo de Areia, com oito meses só para relatar o caso.  Já na Operação Satiagraha, o STJ anulou as provas após um ano e oito meses.
       Faz tempo que não se menciona a Boi Barrica,  operação que motivara a sentença do desembargador Dácio Vieira (TJ-DF) que, em agosto de 2009, determinou a censura ao Estadão.  A censura judicial, apesar de havida como inconstitucional, por ministros do Supremo e diversos jurisconsultos, continua a prevalecer, achando-se o recurso impetrado pelo Estadão em virtual limbo jurídico, pendente de decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do próprio Supremo Tribunal Federal.
      Mas voltemos ao STJ e às provas anuladas. A 6ª Turma atuou com grande celeridade. Conforme refere o Estado de São Paulo, o relator do processo contra a Boi Barrica, “ministro Sebastião Reis Júnior, demorou apenas seis dias  para estudar o processo e elaborar um voto de 54 páginas em que julgou ilegais as provas obtidas com a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico dos investigados. E de maneira inusual, dizem Ministros do STJ, o processo foi julgado em apenas uma sessão, sem que houvesse nenhuma dúvida ou discordância entre os três ministros que participaram da sessão”.
      Assinale-se, outrossim, que o julgamento se realizou “sem um pedido de vista e aproveitando a ausência de dois ministros titulares da 6ª Turma”. O jornal completa a informação acerca da composição da Turma para o citado julgamento: somente Reis Júnior e o desembargador convocado Vasco della Giustina integravam originalmente a 6ª Turma”.  Faltaria, portanto, um magistrado. Será o recém-empossado Marco Aurélio Belizze, da 5ª Turma, convocado para completar o quorum e viabilizar o julgamento.
      Aliás, o jornal estampa, na página relativa à  notícia, foto colorida, em quatro colunas, do ministro Belizze sendo cumprimentado pelo presidente do Senado, José Sarney, ao ensejo de sua recentíssima posse no STJ.
      Conforme a cobertura do jornal em apreço, “uma comparação entre a duração dos processos que levaram à anulação de provas de três grandes operações da Polícia Federal – Satiagraha, Castelo de Areia e Boi Barrica – explica por que ministros do tribunal reservadamente levantam dúvidas sobre o julgamento da semana passada que beneficiou diretamente o principal alvo da investigação: Fernando Sarney, filho do senador José Sarney (PMDB-AP)”.(meu o grifo)
      O atual Presidente do Senado Federal, José Sarney, não é fantasma, mas sói assombrar julgamentos de tribunais superiores. Por exemplo, como na cassação em 2004 da diplomação de João e Janete Capiberibe pelo plenário do Superior Tribunal Eleitoral,  pela suposta compra de dois votos por R$ 26,00 em eleição, sentença de que notadamente se dissociara o Ministro Sepúlveda Pertence.  
       Ainda a propósito do Senador Sarney e de sua família – a filha Roseana, segunda colocada em pleito para governador, logrou a cassação de Jackson Lago, hoje falecido, e a posse no cargo, sem necessidade de eleição extraordinária – na época da crise do Senado Federal, e do envolvimento do presidente Sarney no escândalo dos atos secretos, o historiador Marco Antonio Villa concedeu memorável entrevista a O Globo (publicada a 19 de julho de 2009). 
      Encimada pelo cabeçalho ‘Estamos caminhando para virar a página’ , o historiador e professor da Universidade de São Carlos (UFSCar), entre outras assertivas, disse: “Toda essa crise que ele está vivendo me parece uma espécie de dobre de finados. A partir dali, acho que é a morte política de Sarney. Ele está caminhando para essa morte política. Evidentemente, ele ainda tem um poderzinho, mas já não tem mais o mesmo poder que tinha.”
      É de notar-se que ao fazer tal declaração, o professor Villa não se referia a uma crise hipotética. Então, Sarney somente se deslocava de seu gabinete para o plenário do Senado, a que presidia (e preside), utilizando-se de viatura, para evitar dissabores no curto trajeto dos corredores da Câmara alta.
      Infelizmente, a previsão de Marco Antonio Villa não contara com a posterior (e salvadora) intervenção de um verdadeiro deus ex-machina, i.e., o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a público defender o aliado político,quando asseverou que “Sarney não é um homem comum”.
     Se o seu conhecimento da Constituição semelha algo nebuloso, à vista do caput do  artigo 5º (Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza), o Presidente Lula é um ás da política e mais uma vez o demonstraria.
    Na sua defesa do ‘símbolo maior’ do coronelismo no país (cf. Villa), o ex-dirigente sindical mostrou uma das razões pelas quais José Sarney, depois que derrubou o seu antecessor e senador Vitorino Freire no mando do Maranhão, já sobreviveu a mais de um regime (inclusive o militar, de que foi chefe do partido de nominal suporte), e ainda permanece como  realidade que a muitos pode semelhar anacrônica, mas que constitui um veraz espelho do poder e do seu exercício.



( Fontes: O Estado de São Paulo, O Globo )

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Inflação sob Controle ?

                               

       Dos reclamos que se possam  fazer dos dois mandatos do Presidente Luiz Inacio Lula da Silva, o silêncio no que tange à administração econômica-financeira reflete  um comportamento adequado. Ao contrário de o que temia o mercado, a lição de casa foi aplicada, sem experimentos, nem regurgitos da velha oposição petista à política econômica que dera sequência ao Plano Real.
       No período de Antonio Palocci na Fazenda, a autonomia do Banco Central sob a direção de Henrique Meirelles foi respeitada. Com a sua queda, e a vinda de Guido Mantega, as características deste ensejaram alguns deslizes menores, sobretudo a falta de reação maior quando do aquecimento dos preços. Tisnaram, é verdade, um pouco o quadro as notórias ‘capitalizações’ do BNDES e, sobretudo, a influência das ‘bondades’ do ano eleitoral, e a atribuição a efeitos ‘sazonais’ de o que já aparecia como sinais inflacionários.
     Nos oitos anos, no entanto, em que Meirelles esteve no Banco Central, o respeito do Presidente Lula – malgrado a menor força de Mantega – foi, no geral, mantido aos princípios de uma gestão que deu sequência à anterior no combate à inflação.
     Infelizmente, esse quadro não mais existe. Já a substituição de Henrique Meirelles por Alexandre Tombini não emitira o sinal aguardado pelos observadores financeiros. Bastou que Meirelles se reportasse à desejável autonomia do Banco Central, para que a presidenta se apressasse a dispensar-lhe os serviços.
    O passado, com as décadas perdidas pela inflação, ensinara que em matéria financeira inexistem atalhos no combate à carestia. Convivemos demasiado tempo com o suposto dragão para nos cientificarmos que fora da ortodoxia financeira não há válidas soluções para que logremos vencê-lo e consigná-lo à história inflacionária brasileira. Se heterodoxia financeira para algo servisse, a inventividade de nossos ministros com a miríade de planos por eles apresentados a uma sociedade cada vez mais cética formaria uma cátedra universitária de todas as panaceias e falsos remédios excogitados para que enfim se golpeasse à morte a besta infernal.
     Não faz vinte anos que ela se foi – malgrado artificialmente conservada em um penca de índices remanescentes do período inflacionário – e eis que ela mostra de novo a sua hedionda cabeçorra.
    Não são as manchetes dos jornais que nos gritam da alça dos preços, e dos agourentos índices. Tampouco é o aparecimento ainda discreto das tais maquinetas, anteriores à 1994, empenhadas na frenética remarcação dos preços, em supermercados e no comércio em geral.
    É uma outra linguagem que reaparece, com as promessas vazias de antanho. A Presidente da República tem repisado, em vários pronunciamentos, que a inflação está sob controle.
    Este gênero de assertiva, ainda mais se repetido ritualmente, desperta a suspicácia de que as coisas não são bem assim.
    Não se exorciza a inflação de tal maneira. Se a nova geração desconhece esse tipo de pajelança, as anteriores a têm bem vívida na memória e a dispensam pela sofrida experiência.
     A economia brasileira – e sobretudo os brasileiros e brasileiras para repisar uma invocação reminiscente de tais tempos – sofreu as agruras da estagnação e as cruéis mágicas de mírificos planos (na vanguarda apocalíptica o Plano Collor que apesar de inconstitucional foi engolido pelos poderes competentes para legar ao povo indizível sofrimento e mesmo desgraça). Tudo isso, para quê ? Para nada, até que, com beneditina paciência, se cosesse o Plano Real que viria refazer o esgarçado tecido da confiança do Povo brasileiro.
    A dizer verdade, preferiria não ter a necessidade de repetir esta história, que muitos pensavam fazer parte de um acervo de conquistas da cidadania nacional.
    Senhora Presidenta, a inflação só estará sob controle, se às suas palavras corresponderem ações que corroborem a autenticidade do propósito.
    Palavras vazias, slogans, de nada adiantam. Nem se deve queimar no altar do desenvolvimentismo a estabilidade financeira.
    Se o encanto já está quebrado, e a antiga cobiça, a burra esperteza dos ágios e dos sobrepreços reaparece, carregada pela chusma dos índices, não será por zombar da inteligência do Povo brasileiro que a inflação, como nos plúmbeos anos de seu reinado, será estigmatizada. As  frases ocas, as vãs promessas de ocasião se dispersam e se dissipam levadas pelos ventos da demagogia.
    Se não forem arrimadas em séria gestão das finanças, não valem sequer um minuto de atenção.
    Pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15), a inflação voltou a acelerar (malgrado a propalada expectativa governamental e a ata do Copom, que justificou o corte nos juros, entre outros motivos, por boas perspectivas no front dos preços) alcançando 7,33% em setembro. Segundo analistas, esta foi a maior expansão para o mês desde 2003.
    Tampouco ajuda a alta do dólar, que contribui para pressionar a carestia, embora a depreciação do real ajude a nossa indústria e desestimule a gastança em viagens ao exterior.
    Nesta encruzilhada, a Presidenta tem uma clara opção: ou passa a respeitar a política anterior do tripé anti-inflacionário, que pelo êxito pregresso carece de ulteriores justificativas, ou adentra o terreno de uma política de desenvolvimento com inflação. Terá no próprio PT exemplo dessa alternativa: seja na sua luta contra o Plano Real, que desfazia como artifício eleitoreiro, chegando a contestá-lo no Supremo, seja na sua negociada aplicação bem-comportada, após a assunção do mando por Lula.
     Já estamos nos transes dos arreganhos inflacionários. Se há ainda tempo para restabelecer a estabilidade anterior, seria bom recordar que uma vez saído do frasco o gênio inflacionário, por uma mescla de estupidez e fraqueza, assaz dificultoso será reconduzi-lo para onde estava.
     Com a inflação, salvo um punhado de especuladores, todos perdem. Mas dentre esses perdedores, é bom que a sucessora de Lula tenha gravado na mente que, se porventura permitir no seu governo o retorno do maldito dragão, será melhor esquecer qualquer veleidade de reeleição.



( Fonte:  O Globo )