A onda democrática que nasceu na Tunísia e se estendeu ao Egito continua a atemorizar os autocratas da região. E talvez não apenas circunscrita ao seu espaço árabe. Com a exceção da cambaleante democracia libanesa – ameaçada sobretudo pelo crescimento do Hezbollah fundamentalista -, a Arabia felix era antes da queda de Ben Ali uma coleção não só de ditaduras, coroadas ou não, mas de pretensas repúblicas dinásticas.
Os dezoito dias da revolução egípcia afastaram não só Hosni Mubarak, que envelhecera no poder, mas também a pretensão de transferir o mando ao filho Gamal.
No momento, a vaga democrática assusta a todos os chefes restantes, gerontocratas ou não. Há países em que as condições internas tornam mais pronto o contágio, como a Argélia, de Abdelaziz Bouteflika (terceira reeleição, na presidência desde 1999) e o Yemen, talvez o país árabe mais pobre (a competição é acirrada), com o presidente Ali Abdullah Saleh, no poder desde 1978. Saleh, pressionado por manifestações, entre outras decisões, anunciou que deixará a presidência em 2013. Assinale-se, porém, que não é a primeira vez que revela tal suposta disposição, para descumpri-la posteriormente. Há outros países da chamada nação árabe que são suscetíveis a tais influências liberalizantes, como já o demonstraram a instável Mauritânia, com distúrbios e a auto-imolação; a Jordânia do rei Abdullah II, que talvez por causa de sua bela raínha Rania al-Yassim, de origem palestina, tem descurado bastante os laços ancestrais da etnia beduína com o ramo Hashemita. Daí a sua baixa popularidade, que tanto contrasta com a de seu idolatrado predecessor, o rei Hussein, que presenciara o assassínio do avô, rei Abdullah por um fanático, em 20 de julho de 1951, e pouco depois ascenderia ao trono, pela incapacidade do pai Talal, diagnosticado esquizofrênico (afastado em agosto de 1952). Tampouco estão excluídos o Emir do Kuwait, Jaber a-Ahmad al-Sabah 1977 até o presente (incluído o exílio na Arábia Saudita, depois da invasão e breve anexação do emirado por Saddam Hussein); o Emir do Bahrein, Hahmad bin Isa al-Khalifa, no trono desde 1999 - em que há descontentamento com a virtual posse desse reino insular pela família Khalifa; e o Rei Abdullah, da Arábia Saudita. Ainda no golfo pérsico, o Qatar do corpulento emir Hahmad bin Khalifa al-Thani, no trono desde junho de 1995 (quando depôs em revolução palaciana o pai Khalifa bin Hamad). O Emir do Qatar tem sob a sua asa a conhecida rede árabe al-Jazeera. Além disso, outra interrogação árabe é o líder coronel Muammar Kaddafi, no poder desde 1969, quando, em viagem ao exterior, o rei Idris foi destronado. A Jamairia não semelha imune às influências liberalizantes (já há caso de auto-imolação), porém resta determinar o remanescente controle da chefia carismática do coronel da chamada revolução verde.
Nessa relação de possíveis candidatos a enfrentarem a revolução democrática, é necessário incluir o Marrocos, do rei Mohamed VI. Depois de algumas dinásticas dúvidas, ascendeu ao trono em 23 de julho de 1999, com a morte de seu pai, o indômito Hassan II, que sobrevivera, por vezes com astúcia e coragem, a diversos levantes para assassiná-lo. O atual soberano, também chamado Comandante da Fé, é o 18º rei da dinastia alauíta, que reina no Marrocos, independente ou não, desde 1666. Daí a compreensível maior penetração dessa linhagem no imaginário popular, embora o movimento islamizante haja avançado naquele país do Magreb. Havendo outras monarquias, tidas como estáveis, sido arrastadas pelas ondas da modernidade, não se poderia excluir que o Marrocos de Mohamed VI venha igualmente a ser afetado pelo corrente fenômeno político árabe.
Não obstante, há um outro sério postulante a ser eventualmente incluído dentre os países a serem alcançados pela vaga revolucionária e democratizante, nascida do sacrifício de universitário tornado verdureiro, de nome Mohamed Bouazizi, que preferiu atear fogo às vestes do que viver sob a humilhação do confisco da carrocinha, seu meio de subsistência, e as bofetadas recebidas de mulher policial. Não faz parte do mundo árabe, mas sim do universo muçulmano, em seu ramo xiita. Trata-se do antigo reino dos Pahlevi, derrubado em 1979 pelo imã Khomeini, e que hoje se acha sob o domínio de sucessor menos ilustre. O Irã dos ayatollahs tem buscado conviver com a incômoda presença da revolução árabe libertária, a que inclusive professou postiça satisfação com o seu triunfo no Cairo.
O Irã, do Líder Supremo Ali Khamenei, e do Presidente (eleito por fraude maciça) Mahmoud Ahmadinejad tem atualmente tantas afinidades com a sublevação árabe democrática, quanto o diabo com a cruz. Não obstante, tentou expressar o suposto respectivo júbilo com a sua vitória. A verdadeira resposta da tirania teocrática de Teerã foi manifestada na sua reação contra a solicitação dos dois líderes do movimento democrático iraniano Mir Hossein Moussavi e Mehdi Karroubi, coincidentemente os dois candidatos à presidência, esbulhados na fraude de Ali Khamenei, e que haviam superado largamente o candidato à reeleição, o amigo Ahmadinejad. Essa resposta de Khamenei e seu auxiliar Ahmadinejad se desdobrou primo na tentativa de dissuadir qualquer manifestação de apoio à revolução árabe, o que para a dupla no poder equivaleria a abrir as portas para o ingresso da peste; e secondo, a não-tão caricatural moção da ala clerical majoritária no expurgado Parlamento iraniano que recomenda a execução dos dois cabecilhas da revolução verde (Moussavi e Karroubi).
Na sua maneira de tratar com o dissenso, o Irã de Khamenei se assemelha à Síria sob o atual governo de Bashar al-Assad, que sucedeu ao pai Hafez al-Assad em julho de 2000. Da minoritária seita alauíta – em terra sunita -, os al-Assad já demonstraram à saciedade que não recuam diante da violência para assegurar a permanência no poder. Junto com Teerã o governo de Damasco não hesita em recorrer à repressão mais desapiedada se está em jogo o destino do respectivo regime.
Obviamente, a história nos ensina que o fuzil – e as armas contemporâneas equivalentes – constituem ambígua defesa para os detentores do poder absoluto, chamem-se reis, presidentes ou líderes supremos. Dada a notória dificuldade de lidar com a maciça rejeição popular semelha inexorável a hora em que o fuzil fica imanejável.
Esta é lição de árdua aplicação e difícil aprendizado. Sem embargo, chegará sempre o momento em que luzirá inequívoca, inconteste, transcendente e avassaladora. Como dizem os muçulmanos, inshallah.[1]
[1] Queira Deus (um pouco mais forte do que o nosso oxalá).
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
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