Os constituintes de 1988, os quais tinham vivido o opróbio da mordaça do regime militar, pensaram, nos albores da promulgação da chamada ‘Constituição Cidadã’, de cinco de outubro daquele ano, que a censura era cousa do passado. Pela Carta Magna, não subsistia dúvida que a nefanda vergonha da sua imposição até a livros havia sido jogada na lata de lixo da História. Juntas, tortura e censura foram consignadas pelo Nunca Mais! da mens legis e da mens legislatores a lúgubres e fétidos desvãos, que se augurava para sempre soterrados pela vontade da Nação.
Muito breve voltarei a esse tema, em sua expressão mais preocupante, que é a da censura judicial. A velha e provada regra do direito romano quis custodiet ipsos custodes? nos mostra a urgência de aplicação séria da cláusula pétrea da Constituição. Na sua forma geral, porém, dadas as peripécias sofridas por órgão da imprensa que sempre se distinguiu, mesmo nos tempos de chumbo, em dela ser o paladino, me ocuparei da questão em momento futuro.
Há outra matéria, também pertinente às maquinações para reanimar a censura em segmentos específicos da atividade literária, para tal utilizando os disfarces mais risíveis. Reporto-me a projeto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que tenciona reapresentar ao Congresso proposta de alteração no Código Civil que libera a produção de biografias.
O projeto, que fora arquivado, por decurso da legislatura, com a reabertura dos trabalhos congressuais, volta à baila. A redação do art. 20 prevê que “a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas se lhe atingirem honra, boa fama ou respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.”
Desperta espécie que tal norma seja reexumada, com tais vetos que manifestamente se chocam com as cláusulas constitucionais que vedam qualquer censura. Nesse sentido, o próprio deputado Antonio Palocci (PT/SP), que ocupa atualmente na Presidência o lugar que foi de Dilma Rousseff, apresentara projeto de lei na própria Câmara revendo-lhe o texto, a fim de garantir “liberdade de expressão e de informação”.
Perguntado a propósito, o Ministro da Justiça se faz de desentendido: “ Censura? Não, me desculpe. A censura é proibida pela Constituição. O projeto é ampliativo do Código Civil.”
Será possível imaginar que essa pretendida norma, só porque se refugia sob o suposto abrigo do Código Civil, nada tem a ver com censura ?
Temos visto que na luta inglória – mas que pode render enganosos triunfos, seja nos grotões, seja no interior e até na capital federal – contra a mordaça banida pelo artigo 5º , inciso IX, e artigo 220, parágrafo 2º – o atalho que se afigura menos árduo e mais largo é o de intentar subtrair o desrespeito flagrante à cláusula pétrea, sob a especiosa argumentação de que a matéria em tela releva de outros campos.
No caso presente, a justificativa do Ministro é pobre, quase elementar e não há de emoldurar-lhe o currículo jurídico. Dizer que não se aplica a censura porque o projeto é ampliativo ao Código Civil brasileiro, faz parte daqueles argumentos que dão aos eventuais ouvintes e leitores que de direito algo conhecem aquela dor no pescoço que sentia Lord Altrincham ao ouvir, nas cerimônias do paço, a voz esganiçada da jovem Elizabeth II.
Senhor Ministro,
ainda é tempo de honrar seus predecessores democráticos. Recorde-se, a propósito, de Fernando Lyra que saudou, com a expressão ‘Censura, nunca mais !’, o feliz ensejo da promulgação da Constituição Cidadã.
Muito resta a fazer neste campo. Não é o caso de atulhar com ulteriores inconstitucionalidades a pauta do Supremo.
( Fonte: Folha de S. Paulo )
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
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