O filme de Darren Aronofsky - que disputa entre outros os Oscars de melhor diretor, melhor filme e melhor atriz - não é aconselhável para pessoas demasiado sensíveis, nervosas ou frágeis emocionalmente. Se a despeito de tal advertência, teimarem em assisti-lo, saibam que o fazem por sua própria conta e risco. No entanto, posso desde já assegurar-lhes que estarão vendo cinema de primeiríssima ordem, dentro da tradição artística das maiores obras, que é a de homenagear os grandes de Hollywood e alhures, não pela repetição, mas pela inovação transformativa fundada em passados clássicos.
No caso em tela, o roteiro elaborado por Andres Heinz, Mark Heyman e John McLaughlin se inspira e se entranha no famoso ballet Lago dos Cisnes, com a música de Peter Ilyich Tchaikovsky.
É a história de Nina Sayres, interpretada e vivida em representação que na sua interioridade psíquica lembra o célebre papel da Falconetti, no clássico filme mudo de Carl Dreyer, A Paixão de Joana d’Arc. Se há diversos personagens em ‘Cisne Negro’, o espectador sente a cada momento a presença única da atriz Natalie Portman, que à maneira de um grande rio carece de afluentes, alguns importantes, posto que ao cabo se apequenem diante da intensidade da respectiva força.
Falar de força em personagem como Nina, filha de antiga bailarina (Barbara Hershey) pode parecer um paradoxo. À primeira vista, encerrada no apartamento materno, infantilizada por brinquedos de pelúcia, a um tempo amada, como a realização da carreira da genitora, e reprimida pela inveja dessa mesma realização, Nina é o retrato obsessivo e neurótico de vida consagrada à perfeição na dança.
O artificialismo desta procura – ser a prima ballerina em meio à rivalidade e o despeito de suas coetâneas – é enfatizado por um ambiente de clausura, seja no quarto atopetado de objetos, seja nos salas de luz esmaecida das infindáveis práticas e treinamentos, seja nos corredores tortuosos e enegrecidos do metrô e dos edifícios, no expressionismo de todos os ambientes, em que reaparecem tomadas reminiscentes dos mestres do cinema alemão da época de Weimar.
A trajetória de Nina é marcada pelas seguintes estações: a sofrida indicação para o papel central do cisne pelo diretor Thomas, interpretado por Vicent Cassel. Nessa luta de poder, a reprimida, quase assexuada bailarina logra sair de sua aparente impossibilidade de ser sensual, ao morder Thomas durante o beijo, que o diretor valendo-se da prerrogativa da função, arranca da candidata a prima ballerina. Segue-se o anúncio, feito em escadaria, pelo diretor Thomas da deposição da antiga rainha, Beth, interpretada por Wynona Ryder, a quem ele agradece as ótimas interpretações passadas. Esta não suporta a homenagem, que mal encobre a sua despedida. Beth, ora rebaixada, reproduz com a saída repentina da sala o trauma da própria queda (depois repisada pelo seu aludido atropelamento). Thomas, ao brindar a nova prima ballerina,não deixa de mostrar-lhe a fragilidade de sua posição.
Nas outras estações, o perfeicionismo técnico de Nina não logra encobrir a sua atitude reprimida, que espelha o caráter monacal de sua dedicação ao ballet, e a consequente falta de afetividade e, por conseguinte, a forma assexuada que reveste. Se ela se limitasse a interpretar o cisne branco, como lhe assinala o diretor, nada haveria a acrescentar. Mas esta sua deficiência se refletirá na interpretação do cisne negro,que é o corcel da paixão de Platão ou o id imprevisível de Freud.
Ao revelar tal debilidade, a meiga Nina padece com a rivalidade de Lily (Mila Kunis), que encarna na sua pessoa e na dança as telúricas emanações da sexualidade. A repressão da protagonista, submetida a um verdadeiro ordálio em que se mesclam a auto-flagelação, as fantasias, as tentações e a alucinação. Nessa tapeçaria de muitos fios, será difícil determinar onde termina o factual e começam as projeções da crescente neurose.
Como as cabeças de uma hidra que ameaça a progressão da prima ballerina - que é a estrela do Lago dos Cisnes, a história de amor que conduz ao auto-sacrifício – o sangue aparece no corpo da heroína, a princípio em arranhões nas suas costas, mais tarde nas unhas, até a epifania final, em que mancha o alvo tutu o sangue vermelho escuro do ventre da prima ballerina.
Ressoa o aplauso total da plateia que lhe homenageia a técnica impecável do cisne branco, e a aliciante sensualidade do cisne negro. Nina é abraçada pelo diretor Thomas, que lhe distingue com as palavras rituais que reserva à figura da prima ballerina, 'Minha princezinha'. Na expressão beatífica de Natalie Portman não se vê sofrimento, mas o gozo etéreo de uma penosa conquista. Se é o rictus de alguém in articulo mortis, ou a aura iluminada de uma vitoriosa, o diretor Aronofsky não desvela totalmente. Será porventura necessário ? Pirandello, na sua clássica peça Cosi è, se vi pare[1], nos responde enfaticamente pelo pode ser.
[1] Assim é, se lhe parece.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
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