Na morte de Edward Kennedy existe amarga ironia no que tange à situação do Senado. Kennedy elegeu a reforma da assistência sanitária como o seu derradeiro e desejado projeto. Desaparecendo de cena, diminui a maioria dos democratas para 59 senadores, um número abaixo dos sessenta indispensáveis para derrotar regimentalmente as tentativas republicanas de filibuster, que é a manobra parlamentar da minoria para inviabilizar a votação de projetos em pauta.
O Partido Democrata sabe da importância da reforma da saúde para o sucesso da Administração Obama. Se os republicanos lograrem - e por segunda vez - fazer naufragar essa reforma, terão dado fundo golpe, tanto nas possibilidades de Barack Obama se reeleger para o segundo mandato, quanto em preparar o terreno para uma derrota dos democratas nas próximas eleições intermediárias para o Congresso. Já com o malogro do projeto de reforma sanitária na Administração Clinton, os democratas perderam em 1994 a maioria na Câmara de Representantes, com o êxito de Newt Gingrich, com a sua plataforma do Contrato com a América.
Não esquecendo o passado, a liderança democrata sente que deverá tomar resoluções ousadas para que ele não se repita.
Dessarte, no Senado, onde há maiores dificuldades para a implementação da reforma, os democratas devem procurar aprovar o projeto através de maioria simples e não mais por meio dos ora inatingíveis sessenta votos à prova de filibuster. Como se sabe, perdeu-se tempo na Câmara Alta na tentativa de costurar um projeto bipartidário. No Comitê de Finanças, presidido por Max Baucus (Montana), reuniu-se um punhado de senadores, apelidado de a gangue dos seis, que supostamente se propunha atingir tal escopo. Entretanto, o que se viu é que nesse Comitê, pequeno número de senadores de estados agrícolas e esparsamente populados forjavam acordo que, para atrair uma parcela de republicanos, desvirtuava partes desse projeto, consideradas essenciais para a maioria dos democratas.
Gastou-se tempo demasiado em tentar o acordo bipartidário. O próprio Presidente Obama contribuíu, na ilusão de alcançar entendimento amplo, em que o interesse da população prevalecesse, e não os planos sectários do G.O.P. e do partido democrata, em privilegiar esse primeiro grupo. A decorrente indecisão da Casa Branca só desapareceria quando se tornasse evidente que os republicanos pretendiam procrastinar o processo e não chegar a um acordo.
Existe muita animosidade entre as duas bancadas. Em função da gestão desastrosa de Bush júnior, do último pleito sairam encolhidas as representações republicanas. No processo, foram praticamente varridos os moderados do G.O.P. – no Senado há ainda uns poucos, oriundos dos estados da Nova Inglaterra - o que consolidou o predomínio ideológico de uma bancada bastante conservadora. Para que se tenha ideia do acirramento do confronto, na Câmara de Representantes os projetos da Administração para a recuperação da economia não colheram um voto sequer dos republicanos.
Tendo em vista que o adiamento só favorece ao tacanho jogo politiqueiro de republicanos, firma-se a convicção entre os democratas de que devem ir em frente, apoiados nas respectivas maiorias no Senado e na Câmara. Nesse sentido, sem outra opção os democratas tencionam valer-se de uma esotérica tática parlamentar, conhecida como ‘conciliação orçamentária’ que lhes permitiria evitar o filibuster republicano, e aprovar o projeto por maioria simples.
Esse approach é, sem dúvida, arriscado, porque os projetos de conciliação (reconciliation bills) visam sobretudo a itens orçamentários que concernem ao déficit, e não a uma legislação substantiva, como a reforma da assistência médica. Haverá, portanto, normas que a oposição contestará como estranhas a esse gênero de legislação, a exemplo daquelas que não afetem despesas ou rendas no prazo de cinco anos. Nessas condições, trata-se de saber quantas disposições da reforma sanitária entrariam neste molde.
Técnicos com maior experiência no assunto de ambos os partidos consideram que relevantes tópicos da reforma atenderão às especificações acima: expansão do programa Medicaid para os pobres; subsídios para auxiliar pessoas de baixa renda na aquisição do seguro; novos impostos para estipendiar o programa de um trilhão de dólares; descontos no Medicare (programa para idosos) para ajudar no seu financiamento; mandatos obrigatórios para que indivíduos comprem o seguro e para empregadores oferecerem cobertura; e créditos fiscais para ajudar os pequenos negócios a fornecer cobertura de seguro.
Até mesmo o plano público – tão atacado pelos republicanos – igualmente poderia ser inscrito nessa legislação, sobretudo se receber maior poder para ditar os preços que deverá pagar a hospitais, doutores, indústrias farmacêuticas e outros provedores, o que ajudará o governo a economizar bastante na rubrica dos subsidios.
Há dúvidas maiores quanto a dois outros aspectos de grande relevância: regras que obriguem às companhias de seguro a aceitarem todos os candidatos, e deles cobrem taxas idênticas sem levar em conta as respectivas condições médicas; e a criação de novas câmaras em que pessoas forçadas a adquirir a sua própria apólice de seguro possam encontrar apólices mais baratas do que as atualmente disponíveis.
Não é possível saber com certeza como o funcionário especialista em questões parlamentares – e que assessora quem ocupe a presidência do Senado – vá dispor sobre qualquer uma dessas complexas questões. Nesse contexto, há um plano ‘b’ para elaborar um segundo projeto que abranja todos os tópicos que não forem aceitos na rubrica de ‘conciliação orçamentária’. Esse eventual segundo projeto estaria sujeito, no entanto, às vicissitudes do filibuster.
Há mais requisitos e potenciais dificuldades na alternativa da ‘conciliação orçamentária’. Nas circunstâncias presentes, contudo, a falta de qualquer ulterior opção válida – admitido que se objetive a aprovação de uma reforma da assistência sanitária e não um arremedo – não deixa outra saída à maioria democrata, senão tentar a difícil travessia entre Silas e Caribdes.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
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