A cada dia que passa, a crise hondurenha tende a agravar-se. A cacofonia das partes continua a crescer. Todos os partícipes se acreditam donos da verdade, vestindo as alvas túnicas do direito e da legitimidade.
Um momento. Não seria o caso de repassar-lhes as respectivas contribuições à presente situação?
Comecemos por José Manuel Zelaya, o presidente constitucional. Sua deposição – excluída a expulsão inconstitucional – fora motivada pelas próprias irresponsáveis ações, que objetivavam a votação de um referendo contra cláusula pétrea da Constituição de Honduras (a não-reeleição absoluta). Zelaya tentou envolver o Comandante das Forças Armadas, e acabou tendo a prisão decretada pela Corte Suprema. Zelaya seguia o receituário chavista e por isso acabou apeado do poder.
O Presidente Roberto Micheletti, a despeito de apodado de ‘golpista’, na verdade foi sufragado pela maioria do Congresso, que já se tinha oposto aos intentos de Zelaya de subverter a ordem constitucional. Micheletti e a Corte Suprema hondurenha não têm mostrado muita abertura para a negociação, e decerto não facilitaram os trabalhos do mediador Presidente Oscar Arias, Premio Nobel da Paz, para a implementação do Acordo de San José. Tampouco Micheletti agiu com correção, ao proclamar o estado de sítio e fechar uma estação de tv e outra de rádio. Todavia, o decreto está previsto na Constituição e diante da oposição da maioria do Congresso, Micheletti prometeu revogar o estado de sítio.
Creio que não seja necessário discutir o papel do mentor Hugo Chávez na origem da crise. Sem ele e suas custosas fantasias da democracia bolivariana, seu discípulo hondurenho Zelaya continuaria filiado ao partido liberal-conservador e estaria, de forma bem-comportada, cuidando de influenciar na eleição constitucional de um sucessor.
Obviamente tal não se aplica à viabilização pelo coronel Chávez de todo o rocambolesco episódio da reinserção de Zelaya dentro do microcosmo hondurenho. É tão somente a ele que o presidente Lula da Silva deve agradecer pela chamada materialização de Zelaya às portas da chancelaria da embaixada brasileira.
Com o abrigo do presidente deposto na missão do Brasil em Tegucigalpa, a crise registra marcada deterioração. Se há muitas coisas a discutir, não há dúvida de que a situação se altera radicalmente com o ingresso de Manuel Zelaya na embaixada. Transformando o ambiente neutro e extraterritorial da missão diplomática em plataforma de ação política com viés insurrecional, a crise se agrava.
Não cabe mais discutir do acerto ou não da decisão do tandem Lula-Marco Aurélio Garcia de admitir a presença desestabilizadora de Zelaya na embaixada. Talvez fosse esta mesma a intenção, só que lhes terá escapado o matiz da distinção entre o asilo diplomático, reconhecido internacionalmente, e abrigo-refúgio que não tem qualquer embasamento jurídico.
Quiçá caberia ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, quando interveio no assunto a mando de Lula, ter fraseado de forma menos diplomática e mais explícita a determinação de que Zelaya respeitasse a forçosa neutralidade da missão. Não obstante, por bater de frente contra os manifestos objetivos da aventura, semelha dificil acreditar que mesmo em uma linguagem mais compreensível ao presidente deposto a advertência do Ministro Amorim fosse obedecida por Zelaya.
Com o agravamento da crise, decorrente da instrumentalização da missão como base avançada na criação de situação contrária ao governo de Micheletti, tampouco há de surpreender a reação deste último, com diversas medidas de cerco da chancelaria brasileira. Combatia-se o desvirtuamento de uma função da embaixada, com outro erro, i.e., cerceamento pelas forças governamentais das atividades legais desta missão.
Para tentar consertar o problema, o Itamaraty optou por recorrer ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesta oportunidade, por discordar da competência, houve altercação entre a Embaixadora americana junto às Nações Unidas (e atual presidente do Conselho) e o Ministro Amorim. Em consequência, as providências adotadas pelas Nações Unidas ficaram aquém das expectativas de Lula.
A questão voltou para a alçada da disfuncional Organização dos Estados Americanos. Excluída a iniciativa de Arias, com o seu Acordo (até hoje não aplicado), e que mais dependeu de apoio do State Department, a OEA tem mais uma vez comprovado a própria decenal ineficácia. Na reunião de ontem, ao cabo de intermináveis e improdutivas discussões, o Conselho ouviu com espanto o representante estadunidense qualificar de “irresponsável e tolo” o retorno de Manuel Zelaya à Tegucigalpa. Da forma com que pronunciada a invectiva atinge não apenas ao beneficiário direto da iniciativa, mas também respinga tanto no autor intelectual e logístico (Hugo Chávez), quanto em seus coadjuvantes (voluntários ou não, i.e., Lula, Marco Aurélio e Amorim).
Como declarações anteriores da Secretária de Estado, Hillary Clinton, houvessem sido interpretradas como relativamente favoráveis a Manuel Zelaya (assim como medidas posteriores mais enérgicas contra o regime de Micheletti), a observação do embaixador estadunidense lançou confusão sobre os demais delegados no Conselho da OEA. Para atuar corretamente, careciam de entender as implicações do relativo enigma lançado pela esfinge.
Sendo usuais as reprimendas e recriminações contra a pobre OEA, ora sob a direção algo controversa do chileno Insulza, e tendo o Conselho de Segurança das Nações Unidas marcado a sua posição, será no cenário acanhado da pequena Honduras que uma solução da presente crise deverá ser costurada.
Talvez disso o pressuposto básico seja a admissão por todos os atores, protagonistas ou secundários, de que são responsáveis pela situação. Seja humildade ou honestidade, representaria auxílio ponderável para encontrar uma saída do pântano em que se meteram.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
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2 comentários:
Não parece procedente e, de fato, não o é, o argumento que desqualifica a posição de Zelaia por propor consulta sobre a tal "clausula pétrea" da constituição hondurenha. O próprio conceito "clausula pétrea" é absolutamente insustentável em uma democracia, visto que, se a carta constitucional emana da vontade do povo, este terá sempre o poder de manifestar qualquer mudança em sua vontade.
Colocar papel como pedra, e passado como futuro imutável é, de modo evidente, castrar um povo de sua vontade e manietá-lo à circunstância que, como diz a própria palavra, é sempre temporal, isto é, produto de uma conjunção histórica, de uma dada correlação de forças.
Em uma democracia, o povo é sempre soberano, para determinar seus destinos políticos e reescrevê-los, sobre papel, sobre pedra, ou sobre qualquer outra coisa. Negar tal direito é negar a soberania popular e, portanto, negar o próprio sentido de democracia.
Tenho acompanhado as sempre muito bem informadas e redigidas colunas deste blog. Nelas, como de resto em quaisquer outras, de qualquer colunista, é sempre possível perceber, no fundo, uma posição ideológica bastante bem marcada do autor. Isso, evidentemente, é o mais sacrossanto direito democrático do colunista. No entanto, usar o argumento da "inviolabilidade" de uma constituição pela vontade de seu próprio povo para desqualificar uma ação política de revisão constitucional me parece acabar desqualificando o próprio colunistra, pois que, mais do que aos alvos de seus ataques, acaba o colunista atacando a inteligência de seus leitores.
O argumento do leitor Luiz é interessante e sintomático de muito pelo qual passamos no Brasil e América Latina. Sob sua ótica, o povo sempre está certo, mesmo quando está errado. Céus, cláusulas pétreas atrapalham a vontade do povo? Pois elas estão lá exatamente por isso, para salvaguardar a democracia contra a manipulação e as massas de manobra dos hipócritas salvadores da pátria que tem certeza sobre sua vontade absoluta de poder. Seria interessante pensar em como seria o Brasil sob Lula se fosse possível acabar com as salvaguardas constitucionais com 3/5 dos votos - tenho certeza que o comentarista Luiz tem idéias quanto a isto. A verdade é que é tedioso ouvir esse discurso - será que ele acha que engana alguém? É desnecessário mencionar os exemplos históricos de democracias carcomidas por dentro com resultados teratológicos. Não conheço o Sr. Luiz, mas espero que seja jovem e exaltado, pois a hipocrisia ou a ignorância em quem tem idade para saber melhor é imperdoável. Em tempo, embora tenha o mesmo nome do blogueiro, não sou ele.
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