segunda-feira, 11 de março de 2013

O que esperar do Conclave

                                

          Quando for ouvida a voz do Camerlengo, Cardeal Tarcisio Bertone, com a frase ritual do ‘Exeunt omnes’ (saiam todos), tal não quer dizer apenas que todos os estranhos (não cardeais) devem retirar-se da Capela Sistina, mas também a milenar tradição sempre retomada.
           Ao iniciar-se o conclave, os 115 cardeais encetam um processo que é, em princípio, imprevisível quanto à sua conclusão. A história da igreja é rica em exemplos  de escolhas breves, longas e até mesmo inconclusas, quando não há consenso, e nenhum candidato alcança a maioria regulamentar, que atualmente é de 77 votos (dois terços do colégio). Para participar do conclave, o cardeal precisa ter menos de oitenta anos.
          A presente eleição foi provocada pela renúncia voluntária de Bento XVI, o que constitui causa extremamente rara para um processo sucessório. Mutatis mutandis, este conclave nos faz pensar na eleição de Pietro del Murrone (29 de agosto de 1294). Como os cardeais não logravam acertar um sucessor para Nicolau IV, que falecera a 4 de abril de 1292, estando a sé de Pedro acéfala por mais de dois anos, os eleitores foram buscar o monge Pietro, que vivia recluso.
           Vencida a resistência do anacoreta,  este foi eleito como pontífice máximo, assumindo o nome de Celestino V. O desafio seria demasiado para o novo Papa, que renunciaria em treze de dezembro de 1294. Embora as circunstâncias sejam bastante diversas, após o seu afastamento voluntário, Celestino V conviveria com o novo Pontífice (eleito a 24 de dezembro de 1294) até 19 de maio de 1296, data de sua morte.
          Por suspicácia de Bonifácio VIII, que sentia-se fragilizado pela permanência do antigo Papa, Celestino V seria encerrado em virtual cárcere, na vila de Fumone, no Lácio. Se a decisão de Bento XVI também se deveu à sensação de não sentir-se apto para atender ao seu múnus eclesial, existe uma grande diferença entre os dois casos, posto que na essência não haja diferença nessa evolução. Com efeito, uma vez concluída a missão do conclave que se inicia amanhã, doze de março, haverá na Igreja dois pontífices, ambos devidamente eleitos.
          Como sempre, mesmo os gestos de total desprendimento podem ter consequências imprevistas. Pietro del Murrone, o efêmero Papa, seria canonizado em 5 de maio de 1313, sob o seu terceiro sucessor, Clemente V (Bertrand de Got, francês). O que aqui parece ter alguma pertinência será o período em que coexistirão dois pontífices, um emérito (Bento XVI) e o outro, eleito pelo conclave desencadeado pela renúncia de Papa Ratzinger.
         Presumivelmente, a presença de dois sucessores de Pedro não terá efeito sobre o governo da Igreja. Sem embargo, não se poderá excluir, a priori, que por motivos a que seja estranho o próprio Papa emérito, venha a constituir-se na Sé pontifícia um núcleo alternativo de poder. Essa presunção, decerto pouco provável, não é no entanto absurda.
         Como o fator, mesmo inativo, se acha presente enquanto Bento XVI estiver entre nós, a lógica não impedirá que, de uma ou outra forma, venha a ser reativado, para atender a um escopo precípuo.
         Feitas tais considerações, forçoso será reconhecer que uma tal situação só tenderia a configurar-se na hipótese de que o Papa eleito por este conclave divergir de forma sensível da orientação de seu antecessor.
         Não nos façamos ilusões quanto à situação da Igreja. Ela está em crise, e tal resulta de uma série de soluções ditas conservadoras para problemas religiosos e sociais. 
          A crônica eclesial se reflete através dos séculos no embate entre o campo conservador e tradicionalista, e aquele renovador e progressista. Muitas vezes, a mudança no Vaticano pode ser involuntária – como, v.g., na perda do poder temporal e dos domínios pontifícios – ou voluntária, quando decorre de um processo resultante de uma decisão papal, como foi o Concílio Vaticano II.
          A renovação conciliar, uma vez concluído o Concílio, sofreria na parte final do pontificado de Paulo VI  (30.VI.1963-6.VIII.1978) a crise da Encíclica Humanae Vitae, que ignorou as recomendações de comissão pontifícia  em matéria concepcional. A  solução conservadora prevalece até hoje, em manifesta discrepância com as pressões da vida moderna.
          Depois do efêmero pontificado de Papa Luciani (26.VIII.1978 – 29.IX.1978) como  João Paulo I – que surgira como esperança da retomada do espírito joanino na Igreja – foi cortado de modo abrupto, o  conclave seguinte escolheu o papa polonês, João Paulo II.
          Dentro do esquema conservador da igreja do Cardel Primaz  Stefan Wyszynski, e ainda relativamente jovem e vigoroso, Papa Wojtyla buscaria captar a forma do tempo com a substância da tradição. Como seria de esperar, se ressentiria de contradições assaz marcadas, e o novo estilo iria trazer o que teólogo Karl Rahner, S.J. iria denominar de modo pungente como o inverno na Igreja.
          Papa Ratzinger, que é também teólogo, sempre foi estreitamente ligado ao Papa João Paulo II, tendo sido inclusive um dos principais auxiliares no combate ao florescimento de tendências como a teologia da libertação, coadjuvado com o empenho na restauração conservadora.
          Nunca a Igreja do presente tanto evidencia a sua necessidade de um novo aggiornamento, o vocábulo italiano que de forma tão abrangente reflete a necessidade de abrir janelas e de trazer a visão do mundo atual para a igreja, de maneira que possa com ela conviver, de modo pró-ativo e não mais antagônico.
          A Igreja carece de ter uma visão prometeica e generosa, e não mais retrógrada e epimeteica. A Igreja tampouco pode ter medo do século, porque está inserida nele, e lhe deve respostas urgentes aos problemas colocados pela evolução da sociedade.
         Naves vazias, como se deparam amiúde na velha Europa, e um movimento de fuga como se encontra na América Latina, com a crescente profusão das seitas, são desafios reais para a Sé Apostólica, que não pode refugiar-se em posturas ultrapassadas e numa pastoral superficialista, que não mais responde aos desafios da pós-modernidade.
         O conclave deveria ser instrumento de uma autêntica renovação eclesial. Em tal renovação, como nos ensina o Evangelho, as verdades eternas convivem com as necessidades do presente. Ambas se dão as mãos, com o que expressam a atualidade da fé que se renova, para atender às exigências do tempo e de modo a fazer soar com maior força, a perenidade da Palavra de Deus.
        A Igreja carece de santos e de homens e mulheres. Em termos de santidade, a palavra joanina não perdeu a sua cogente atualidade – dentro do próprio espírito do Apóstolo das Gentes, que motivou o Cardeal Roncalli a assumir nome há muito esquecido na série pontifícia.  Por isso, precisamos trazê-los para os altares, com Papa João à frente, não mais simbolicamente escanteado, como se a sua mensagem devesse ser continuamente preterida.
       Mas esse compromisso da Igreja de N.S. Jesus Cristo deve igualmente ser visto na preferência aos santos de nossos dias, como expressão do voto de pobreza e de autenticidade evangélica.
       Através da longa caminhada eclesial, os conclaves podem ser ricas caixas de surpresa. Os 115 cardeais que o compõem foram na sua maioria escolhidos por Pontífices que pensavam criar purpurados que se adequassem à sua visão conservadora da Igreja.
       No conclave que presidiu a escolha do Papa do Concílio, os cardeais pensavam eleger um Papa de transição, após o longo pontificado de Pio XII. Não atentaram para o nome indicado pelo ancião Cardeal Angelo Giuseppe Roncalli, não obstante o último pontífice a adotar tal nome datasse de princípios do século XIV. Sem embargo, sob o diáfano véu de recôndita predileção, apontando a eponimia do apóstolo o Papa Buono como seria designado ulteriormente dava elementos que pouco tinham a ver com um pontífice que viesse a ser apenas mais um número na longa série papalina.
       Dessarte, ao iniciar os seus trabalhos amanhã seria importante que tivéssemos presentes as perspectivas do Conclave. Dele pode-se esperar ou soluções burocráticas, ou posturas ambiciosas e implicações a princípio opacas, que, com a eventual intervenção do Espírito Santo, estendam-se  muito além da vã filosofia e da política eclesial.
       A  história da Igreja e da Sé Pontifícia aí estão, sem que possamos saber se para confirmar a mediocridade do tempo presente ou, se com o adjutório do Espírito Santo,  a esperança do futuro.

 

( Fontes: Annuario Pontificio  1980; Annuario Pontificio 1988 )

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