Depois de muitos anos de ausência, o Estado começa a entrar nas favelas cariocas. O seu número já anda pelos míticos mil, tal é a proliferação dessas construções feitas sem alvará e quaisquer outras formalidades, arrampicadas em morros e invadindo terrenos baldios. Até em parques públicos, como no do Flamengo, intentam aninhar-se, na busca de precários abrigos.
Diante do número e da profusão – longe vai o tempo em que no século XIX no morro epônimo surgiu a primeira comunidade que lhe herdaria o nome – o ingresso do poder estatal nas diversas favelas tem de se realizar em forma gradual. Ao contrário das transitórias e violentas incursões policiais de antes que, na essência, nada mudavam, eis que o tráfico logo retomava o respectivo domínio sobre populosas comunidades. Apesar de não gravitarem no submundo dos traficantes, sendo na sua grande maioria laboriosos e honestos, os trabalhadores e suas famílias tinham de curvar-se aos cruéis e broncos caprichos do tráfico, respeitando os seus toques de recolher e suas determinações, por estapafúrdias que fossem.
A administração do governador Sérgio Cabral e de seu Secretário de Segurança, Mariano Beltrame, iniciou com a ocupação do morro Dona Marta, próximo ao Parque Guinle em Botafogo, o que pretende ser empresa de longo fôlego, que não pode ser implementada no quatriênio de uma governança. Vencendo o ceticismo inicial, a implantação do policiamento comunitário arrancando a erva daninha do tráfico, e de todos os crimes que nela se entrelaçam, cria as condições mínimas de cidadania. Ao invés de feudo enquistado na planície de uma cidade partida, a antiga favela se vai transformando em bairro, habitada também por gente morigerada, que quer viver ao amparo da lei.
Em seguida, vieram as ocupações do Batam, no Realengo, da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, e do Chapéu Mangueira e Babilônia, nos morros do Leme. Contrastando com a transformação de Dona Marta, essas antigas favelas ora se acham na fase complementar da erradicação do tráfico, sobretudo na eliminação de epifenômenos dela decorrentes, como em episódios de banditismo derivados da extinção da atividade principal.
A terceira fase, dedicada à limpeza das favelas de Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, a cavaleiro de Copacabana, Ipanema e Lagoa, se caracterizou por reações dos traficantes expulsos, que provocaram transtornos máxime em Copacabana. Dadas as diferenças nas respectivas potencialidades de malefício, e o caráter ainda incipiente do processo de extirpação do tráfico, os distúrbios (queima de coletivos, intimidações do comércio, etc.) ocorreram, sobretudo pela falta de providências profiláticas a serem aplicadas pela polícia.
A despeito de anunciadas com antecedência pelo governador - o que vai ao arrepio das normas de segurança – as tomadas das favelas em Tabajara e morro dos Cabritos ora se realizam em duas etapas, de forma a evitar os ‘protestos’ de Pavão-Pavãozinho, reforçando a proteção das áreas vizinhas e dificultando, em consequência, as ações de distúrbio do tráfico.
Pacificadas essas áreas e – o que é mais relevante – reintegradas no tecido citadino, com a presença da vis estatal em áreas nas quais timbrara pela negligente ausência, restam na Zona Sul mais dois grandes centros em que o tráfico hoje opera livremente: Vidigal, nas montanhas da avenidade Niemeyer, e a enorme Rocinha, que se estendeu das encostas de São Conrado até a Gávea. Representam, decerto, um desafio para a polícia militar do Secretário Beltrame, não só pelo tamanho (a Rocinha será a maior favela do Rio), senão pela conformação de sua implantação.
Ali estão, no entanto, e terão um dia de ser enfrentadas – se perdurar a política encetada pelo Governador Cabral. Como as demais, a principiar pelas da Tijuca e as do Complexo do Alemão, entre tantas outras. Mas isso é uma outra estória, que não cabe no corrente ano da graça de 2009.
( Fonte: O Globo )
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário