terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Erro de Cameron


                                
        
        Afastado da política, por força do desastroso engano - utilizar de forma irresponsável mais um referendo sobre a permanência do Reino Unido como forma de ganhar tempo, pensando que o povo inglês recuaria diante da proposta de desfazer a união com o Continente consubstanciada na União Europeia - David Cameron, além de perder a liderança do Partido Conservador, a deixou para ser disputada por jovens demasiado ambiciosos, muita fumaça e pouca bagagem política, como os gêmeos Johnson, ou então por veterana ministra, como Theresa May, que conservara por lustros a secretaria do Interior, demasiado habituada às mofinas práticas dessa poeirenta pasta,  a quem falta a visão política para  altos voos, das prestigiosas secretarias.
            Por ora, a veterana ganhou a partida, mas perdeu pelo visto a oportunidade de abraçar planos mais elevados, justamente aqueles que tinham motivado os líderes da geração passada, ao aceitar o repto de União Europeia que deixasse para trás a mediocridade de um retorno a Old England na cinzenta mas reluzente fase histórica, marcada por grandes potências como as dezenas de milhões da U.E., a Federação Russa e os Estados Unidos da América.
              Grande parte da população britânica já se deu conta que o sonho do Brexit é  justamente isso. Projeto romântico, com o olhar voltado para a grandeza do século XIX, quando Britannia ruled the waves, e a glória do crepúsculo senhoril, cercada pelas periferias continentais, que chegaram com a crista alta e vastas, imensas terras, que apontaram nos horizontes, para não mais deixá-los.
               O brexit foi feito às carreiras, e em atmosfera de veraneio se votaria depressa em desfazer o que um punhado de líderes de têmpera mui diversa levara décadas para realizar.
                A estultícia costuma ter as pernas curtas, as ideias do futuro entre vagas e confusas, pois as ambições mal-digeridas pensam possivel trazer de volta a grandeza do passado, que exibem em largos gestos e portentosos, algariados risos, com o brilho nos olhos como se naqueles postos acanhados do breve verão de um norte de céu enfarruscado factível fosse ressuscitar a imponência dos imensos dreadnoughts e do olhar  distante de homens curtidos pelas ondas cinzentas do mar infinito, em que o sol jamais se punha.
                 Vendo de longe esse estranho espetáculo, alguém há de perguntar-se porque se acreditou possível que num  delírio de veraneio do hemisfério norte, a que falta o sol radiante do Mediterrâneo, e as nervosas ondas do Canal são tristonha alternativa, empurradas pelo vento que vem de varzeas sem o brilho da esperança que luz nas águas por vezes faiscantes, entre nervosas e brilhantes, do Mar Mediterrâneo,  que é história do começo ao fim, e que no verão há de luzir nas correntes que abraçam ou imitam o céu cerúleo, a que cruzaram os lenhos do poeta, e nos cueiros das eras heróicas abriram passagem para estouvados, corajosos, loucos nautas que rejeitar não podiam os cinzentos, por vezes mortais acenos, das grandes áreas do mar oceano, que envolto em plúmbeo manto, atraía a vasta grei de homens a que audácia abraça e enlaça, enquanto se desenha à frente as terras do sem fim, que, volúveis, se vestem do cinza dos céus sem horizonte, e, por vezes, atraem os pobres nautas com o mar azul adormecido, ou com o inacessível verde das esmeraldas que resplendem nas imensas planícies de um oceano sob os raios de um sol incandescente.
                         Dizem os marujos que o Mediterrâneo mudou. Muitos miseráveis o atravessam tangidos pela ilusão e pelas cruéis negaças de um próspero Continente,  enquanto da velha África partem em busca para a nova Europa, sob as cantigas mendazes das riquezas e da mesa farta, as hordas dos miseráveis do presente, em busca menos de abrigo do que de oportunidade.
                          Mas o mar Mediterrâneo, por velho que seja, e por ter visto muitos impérios e conquistas, pode ser tão cruel quanto o Mar do Norte que inspirou o filme. Por isso, muitos trânsfugas nele findaram suas jornadas.
                            Na criação, não há criatura possa ser mais cruel ou benfazeja, mais plácida ou perigosa, debatendo-se em vagas incessantes, que saem não se sabem bem de onde, ou vão terminar em costas sem nome.  Grandes levas de infelizes já intentaram cruzar esse mar que ouviu os primeiros cantos dos vates da pré-história.
                             No entrecortado litoral do mar dos gregos e dos romanos, me lembra deparar em praia pedregosa, num daqueles espaços a que a idade permite levar nomes que relembram antigas tribos, na angusta praia, a que nenhum turista visita, lá um fotografo vadio descobriu o corpo de um menino de cerca de três anos, que parecia dormir, cansado de muito andar, e que afinal triste passageiro de uma barca com mau capitão, morreu afogado sob as ondas que tantas desgraças já viram. Hoje, ele dorme eternamente, oculta a cabeça sob o bracinho que não mais se moverá, enquanto a criança empreende aquela última viagem, posto ao relento, sob o marulhar das ondas, e o corpo voltado para uma sombra que é tão episódica quanto a foto do alerta repórter, que o levará para longe, muito longe.
                            Essa foto, eu guardei. Os seus pais terão seguido viagem. Alan Kurdi ficou no caminho. Como tantos outros, a que ninguém veio buscar.  Ao ver-lhe o corpo pequeno, que nunca crescerá, a adornar páginas de revista para recordar da tristeza dos êxodos, e da crueza dos homens que não dão guarida, eu me pergunto, por que tanta crueldade que uma escorraçada criança, que foge levada pelos pais ou por parentes, à cata de um abrigo que jamais se abrirá,  por quê tanta gente te contempla, oh Alan? Verão nele a inocência que não apiedou o tirano que o expulsou com a família de sua bíblica terra.
                            Em guardando esse testemunho mudo, de um fotógrafo desconhecido, o corpo da criança dorme.  Ele já esqueceu o casebre de onde saíu, a família refugiada o deixou para trás. Quiçá não lhe ouviram a voz, quando o barco soçobrava.
                             Diante desse menino inocente, as fúrias do presente cumpriram o seu triste, maldito fim. Foge de casa, quem é dela escorraçado. Os pais o levaram, mas o mar cruel fez a barca soçobrar. Na hora, quiçá não se lembraram dele. Ou, assustado, terá fugido daquela crueldade de uma força da natureza, que faz lembrar tantas outras forças, quiçá ainda mais maldosas.
                            Para ele, de que o sobrenome indica a procedência, a jornada terminou. Pouco terá entendido, mas de fome e sede terá sentido o amargo gosto.
                             Hoje virou foto de ilusão. Parecerá melhor para muitos, que até poderão verter em sagrado segredo uma outra preguiçosa lágrima.
                             E quem sabe? alguém dirá: coitadinho... pelo menos nos aparece dormindo em uma praia sem nome, no velho Mar Mediterrâneo.    

PS.   Não é esta a primeira vez que me ocupo de Alan Curdi, de três anos de idade, e cujo nome indica a origem nacional, relativa a um povo que ainda vaga por diversas países, e não logrou até o presente uma terra que possa declarar como sua. São bons e valerosos guerreiros, e batalham na Turquia, onde são, por vezes, perseguidos por Recip Erdogan, para relembrar um político poderoso, atualmente presidente daquele país.




( Fonte:  Blog de 22/II/2018 )

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