Quando um erro nacional se desprende de seu
infeliz criador, não vá este pensar que breve lhe há de surgir o momento em que
o pesadelo - por ele mesmo fabricado - se vá desvanecer na manhã seguinte, como
sói acontecer com outros flagelos da noite em que o desgraçado, além de suar
como um porco, se revira nos lençóis, perseguido por tantas ânsias e ignotos monstros.
Pois como tentar negar que o
pesadelo será sempre criatura da noite? Quando nela de repente se desata o fio
da consciência, e a vítima se debate em angusto, sufocante, claustrofóbico
poço, gélidas bagas de suor abundante lhe molham ao parecer os panos que o envolvem.
E o frio que tão profundo sente, ao nele
enrolar-se e minaz enxarcar-lhe os lençóis, enquanto lhe parece surgir à volta colante
criatura, a ponto de achar-se sufocado pelo que acredita, na noturna demência,
como se fora um quase réptil, que
rasteja no transe de respiração descontrolada.
A noite é tão companheira da enxerga
do miserável, quanto do luxuoso leito de um ser, que por existenciais favores,
se creia superior ao comum dos mortais. E quando cai de chofre, trazendo aos sedosos
lençóis e à maciez do fino edredon a
respiração opressa, que nele se largará como colante, tão fria quanto íntima
companheira, de infeliz que se extrema em meio a temores insondáveis e os
sobressaltos que lhe reserva sorte tão madrasta quanto o pesadelo que, dizem,
se desprende das solitárias tumbas daqueles que dormem profundamente.
A consciência do erro, que solitária surge,
não evitará que ao infeliz visite respiração ansiosa, extremada, da vítima de
alguma cruel maldição. E a autoridade,
que, de repente, os páramos confronta em vez da glória benfazeja, será ela
acaso esquecida dos infelizes, que ao igual da alta personalidade - que viu
cortada pela punição divina sorte que
pensara fosse sua companheira de
jornada - e a buscara nos olvidados terrenos baldios de loucos devaneios, que
a Fortuna, deusa tão inconstante quanto pouco confiável, lhe vem depressa golpear,
com a força e peso que os tolos castiga.
Eis que, segundo a própria
natureza, eles a provocam e incitam. Tanto a companheira da respiração opressa,
quanto aquela da angústia, se confundem no espaço insone, que pesado recai
sobre o infeliz, passageiro este sem volta de desastre por ele anunciado,
rufando os tambores e sob o toque atrevido dos clarins, que hoje orquestra
algum taumaturgo, e que no silêncio da alcova se transmuta em sons estranhos,
filhos de noites sem lua, que investem contra os infelizes porventura ouvintes
em estridente escárnio, que sobre o fracasso fabricam grito de exausta fúria, pejado de um fundo
deboche, que a tudo parece levar de roldão.
Os soníferos já não fazem
efeito. Malgrado tudo, as imagens noturnas continuam a picar-lhe, lancetá-lo
com doestos, injúrias, gracejos e mofas. A ironia, que o confunde e menospreza,
ele sente feri-lo com força. Mas será o doesto, que só ele escuta e entende,
que fundo sente atingir-lhe a própria imagem, que a cada vez, como nas visitas
nervosas de Dorian Gray ao próprio retrato, verá com a veracidade filha daquela
realidade que o outro pensara ocultar.
2. O que hoje existe é a vitória da mediocridade, e do nostálgico
regressismo, de uma parte, e da tola
ambição de um punhado de políticos de segunda ordem, que sem nada entender do
fenômeno, e do próprio erro de David Cameron, correm para abocanhar o pedaço
de carne que a displicência do Primeiro Ministro lhes jogou com agressiva e
leviana falta de percepção dos interesses da velha Britannia.
O que a realidade do presente
nos mostra, confunde e machuca não só quem acredita no projeto da Comunidade
Europeia, depois de tantas guerras intestinas, de tantas carnificinas, como a
da Grande Guerra, que dizimou gerações, e preparou, com surpreendente zelo, o
Segundo Ato do Armageddon, que seria
a revanche da Alemanha, e que terminou em conflagração mundial, que dispensa
maiores apresentações.
Ao cabo de tais guerras
mundiais, além do mundo da chamada belle
époque, e do império austríaco, que luzira durante séculos, houve o
Holocausto com a insânia do nazismo, a que se seguiria no pós-guerra a criação
das Nações Unidas - que sucedeu à Liga das Nações -, a descolonização e a
formação do Mercado Comum, cujo núcleo inicial foi a comunidade do carvão e do
aço, unindo pela forja da economia a Alemanha Ocidental, a França, Bélgica,
Holanda e Luxemburgo, a par da Itália.
O Reino Unido, a principio,
não participou do processo europeu de formação do Mercado comum. Considerava-se
grande potência, vencedora do nazismo, e pensava ter condições econômicas para
enfrentar de igual para igual a Europa continental democrática.
Fundando-se em nostalgias dos
séculos passados, não tardaria muito em
que Londres tentasse reverter o processo a que a principio desdenhara. Sem
embargo, não contara com o crescimento do gaullismo, que superaria a IV
República, que nem o grande Mendès-France
pudera conter, e o general Charles de Gaulle, por conta da insurgência na
Argélia, voltaria ao poder, e reconstituiria parte da ascendência francesa com
a própria autoridade.
O problema com o general é
que por motivos políticos, ele se recusaria em suas famosas conferências de
imprensa a admitir o Reino Unido, como parte da Comunidade Econômica Europeia.
A elite política inglesa -
seja, os trabalhistas, os conservadores e os liberais - se convenceram de que precisava adentrar o
organismo de Bruxelas, eis que os planos de uma associação dos países que
tinham ficado de fora da CEE não tinham condição de abrir o mercado continental
europeu para as indústrias inglesas.
Dessarte, somente depois
da morte do General de Gaulle, no quarto final do século XX, o Reino Unido
lograria entrar na CEE. Conservadores, Trabalhistas e mesmo Liberais se
tornaram membros do Mercado Comum Europeu, com que se atendeu a velho sonho de
estadistas de Sua Majestade.
É bem verdade que o
saudosismo do velho poder mundial do
século XIX permanecia em alguns grupos nostálgicos da Inglaterra que detinha a
maior frota do Planeta, e que nos tempos da Rainha Vitória e de Eduardo
VII tem a primazia nos mares.
A Grande Guerra - que o estúpido belicismo do
nazi-fascismo faria ser sucedida pela II Conflagração Mundial (com as
consequências que bem conhecemos) - preparou o teatro europeu - após esfacelar
o Império Austro-Húngaro - para a geral carnificina da Segunda Guerra Mundial.
Gritava aos céus,
portanto, que o Velho Continente somente através da União alfandegária reuniria
a força econômico-política necessária para vencer o desafio da nova Política
mundial.
Sobrevive, contudo,
na Inglaterra o orgulho imperial e o anelo de reviver a sua grandeza anterior,
não através da Organização de Bruxelas, e sim pela tentativa de um vôo solo, em
uma época na qual Britannia, se
carregada de tradições, carece bastante do aporte de Middle-Europe.
É isso que explica
o continuado esforço de um particularismo, dessa feita britânico, em recuperar o poder de antanho, caminhando como
dantes sozinha.
Esse sopitado
desejo levaria Tony Blair a convocar e vencer um primeiro plebiscito, que
pretendia restaurar a velha Inglaterra, e afastá-la da empresa européia de
Bruxelas.
Por muito tempo, permaneceu
dormente essa nostalgia - como se liberando-se do organismo de Bruxelas, o
Reino Unido voltaria a ser o que era no século XIX...
Já dessa
vez, Blair mandou realizar o referendo
como se houvesse razões bastante para justificar essa um tanto leviana
brincadeira com forças retrógradas, sem maior peso na política de Westminster, mas que recorriam ao
intento de trazer a grandeza imperial de volta. Por isso, o comprometimento de
Tony Blair - pondo em risco a iniciativa da intelligentsia britânica - já me
parece brincar com o desastre.
Apesar dos
ataques que sofre, Tony Blair vence mais essa batalha. No entanto, a dúvida
remanescente, ou melhor dizendo, o sentimento de culpa de parte do estamento
inglês, levaria o seu distante sucessor
- e um político decerto sem o brilho deste seu antecessor - a
cometer erro histórico, ao abrir as portas da cidadela a um punhado de
micro-partidos oportunistas, e a realizar, em pleno verão, mais um plebiscito
sobre a saída da União Europeia. Abraçado pela velha geração, como deixar a Comunidade
Europeia fosse uma atitude corajosa, que abriria não só as portas de Mammon, e da antiga opulência do Império...,
esse plebiscito do Brexit (Britain exit) reanimou a velhos aposentados e a antigos nostálgicos
de Império em que o sol jamais se punha... Além da pobre deputada trabalhista,
morta por um velho celerado, essa
consulta aos súditos de Sua Majestade, apresentou esquálida maioria
pró-nostalgia.
Diante do fiasco por ele causado - e
nesse momento não me esquece a sua pose altaneira a passar depressa pelas salas
da direção da Comunidade Europeia, como se o andar estugado fosse para evitar
qualquer contato maior com algum europeu... Dentre os grandes nomes entre MPs
do Partido Conservador, do Labour e
do Partido Liberal não me consta que tivessem tão pouco apreço ao contato com
os seus irmãos europeus, como pude observar, na Tevê continental, aquela
pressa, aquela aloofness
do sisudo Tory David Cameron, atravessando com passos largos as grandes salas
do Organismo diretor de Bruxelas, como
quem deseja evitar qualquer contato com algum colega representante de outro país
europeu no centro da governança da Comunidade Européia...
Não só para
entender um assunto, e ainda mais uma questão de sumo interesse de Sua Majestade Britânica, a falta
de naturalidade e de, na verdade, proximidade com representantes não da
potência britânica, mas de outros países europeus - e são muitos hoje os que
compõem a C.E.- não pode conduzir a essa
aloofness, a que me reporto na nota
de pé-de-página.
Não creio, por
conseguinte, que o erro de
David Cameron, erro que lhe valeu a perda da direção do gabinete de Sua
Majestade, haja sido voluntário, se
tivesse ele a intenção de afastar o Reino Unido da Comunidade Europeia. Sem
embargo, tal erro, se não foi voluntário, terá sido algo do domínio do Dr Sigmund Freud.
O desconforto
com a vitória do Brexit - com maioria
bastante débil para determinar tal decisão com tais consequências -
persiste, pois sobre ela paira a suspeita da falta de legitimidade. Em
outras palavras, um plebiscito feito às
carreiras e aplicado em alguma semana do verão inglês, tratando de questão que
foi objeto de lutas políticas memoráveis,
é aprovado com muito escassa sensação de legitimidade.
Sem falar no
lamentável erro de David Cameron - que lhe custou a direção do gabinete de Sua
Majestade - os principais personagens do Brexit nos transmitem aquela velha dor
no pescoço que Lord Altrincham sentia
quando ouvia discursar a recém-coroada Rainha
Elizabeth II...
Com efeito, os irmãos Johnson nos dão uma impressão de
imatura ânsia de poder - ambos se dizem partidários do Brexit, embora Boris o
mais conhecido deles tenha chegado a gabar-se de que poderia fazer tanto documento favorável ao Bréxit quanto um contrário... Essa afirmação de
causídico - que parece favorecer mais a retórica do próprio estilo, do que o
que realmente está em jogo: o Brexit
corresponde ao interesse inglês?
Por outro
lado, a atmosfera de pouca seriedade é composta pela grande amiga de Donald
Trump - Theresa May, que se
debate com os irmãos Johnson, seus opositores intrapartidários na bancada dos Tories, e que não semelha personagem que seja do
porte da Thatcher.
Por isso, chega a ser
contristadora a atitude dos ingleses - e mormente das donas de casa - que
temerosas de ficarem sem comida, e de reeditarem os negros tempos de seus antepassados
recentes, quando da Blitz nazista
sobre Londres - passaram a estocar comida.
Essa
atitude mostra a irresponsabilidade dos conservadores que desejam logo tornar
efetiva a saída da Comunidade Européia. Parecem, contudo, reeditar os tempos de seus
avós e pais, quando a Blitz aérea
germânica bombardeou a Inglaterra. Nas
condições precárias de então, as donas de casa inglesas trataram de montar
estoques alimentícios em suas residências.
Com a
fraca Theresa May - que mais pensa manter-se na liderança do que criar
condições para que o Reino Unido não fique desabastecido pelo insano capricho
do Brexit - o observador da antiga grande potência
inglesa atravessa um período difícil se quiser determinar se a velha Inglaterra
- pelo capricho do Brexit e a
fraqueza de sua liderança - terá condições de implantar a fantasia do Brexit, ou se esta comédia de erros,
determinada pela fraqueza da atual liderança - a par da ambiguidade do líder
trabalhista que, mesmo contrariando boa parte dos deputados do Labour, parece preferir o silêncio da
falta de comprometimento, a uma postura mais incisiva.
A
fraqueza - ou pelo menos o pendor ao não-engajamento - parece ser a tônica entre
os líderes que se acredita pró-CEE. Com
líderes desse jaez, que acham mais prudente o silêncio do não-comprometimento,
enquanto outros pensam trazer de volta, em passes de mágica retórica, a Velha
Inglaterra em cujo Império o Sol jamais se punha.
O que
será interessante verificar será a atitude do Povo inglês e notadamente suas
donas de casa, quando os seus sonhos nostálgicos de grandeza forem cortados por
super-mercados com prateleiras vazias, e por outros problemas conexos de falta
de estoque alimentício.
Não sei
se valerá a pena para Theresa May consultar Nicolás
Maduro, o ditador venezuelano, para que lhe dê algumas dicas quando ao
desabastecimento, eis que esse senhor
convive por alguns anos com a falta generalizada para o seu Povo de artigos
comestíveis, y otras cositas más...
( Fontes: Manuel Bandeira,
Oscar Wilde, The Independent, The New York Times, O Estado de S. Paulo )