terça-feira, 3 de maio de 2011

Foxconn ou Tecnologia em pacote neocolonialista

           As formas de instalação no Brasil da empresa taiwanesa Foxconn, dentro de negociação em curso, provavelmente encetada durante a visita de Dilma Rousseff à República Popular da China, vão tomando contornos decerto familiares a esse tipo de inversão e de suposta transferência de tecnologia.
           Do chamado grupo dos BRICS, com a possível exceção da neófita África do Sul, o Brasil se assinala pela marcada ausência de grandes empresas de capital nacional no ramo de indústrias com alto potencial tecnológico. Exceção feita de Volta Redonda,da Embraer, da Vale – esta precipuamente grande mineradora e, portanto, exportadora de matéria prima – e obviamente da Petrobrás, o restante de nosso parque industrial apresenta alto coeficiente de controle estrangeiro, e correspondente baixo aporte de alta tecnologia.
           No setor das grandes montadoras, o governo – o que, paradoxalmente, já se delineara no regime militar – permitiu que as empresas brasileiras desaparecessem. A própria administração FHC escarneceu da resistência do último remanescente, a Gurgel, que também passou a controle alienígena. nEm tal aspecto, convém que se frise, o Brasil é a único grande país que não dispõe de montadoras de veículos nacionais.
           Ficou, dessarte, a nossa implantada indústria de autopeças submetida a condições de mercado bastante desfavoráveis. Embora genuinamente nacional, enfrenta a paradoxal situação que as suas compradoras – as montadoras de veículos automotores – são todas estrangeiras. Sendo a relação entre as produtoras de autopeças e as montadoras ou oligopsônica ou mesmo monopsônica (de poucos ou de um único comprador), as descabidas exigências e abusivos baixos preços estabelecidos pelas grandes montadoras (o monopsônio ou oligopsônio é o reverso da medalha do monopólio ou oligopólio, com o mesmo desequilíbrio em favor do comprador ou vendedor isolado) tendem a colocar as empresas de autopeças em situação estrutural de dependência, que vai muito além das condições aceitáveis do mercado.
           Nesse sentido, o seu caráter clientelar tende a acentuar-se. As eventuais correções, realizadas pela autoridade governamental, quando a duras penas requestadas, não são de molde a modificar a iniqua estruturação da relação de produção.
           Antes de tratar especificamente das exigências da notória empresa Foxconn, semelha oportuno relembrar as condições neocolonialistas que presidiram à instalação em território brasileiro de muitas das sucursais das montadoras americanas, européias e asiáticas. Em verdadeiro jogo de gato e rato (parece escusado precisar a quem se reportam os ditos animais), os governadores estaduais se prodigavam em arrancar o privilégio da instalação nos respectivos domínios de montadoras estrangeiras interessadas em ter filial no Brasil. Entrava-se em uma espécie de leilão às avessas, no sentido de que quem oferecia a sede cuidava de podar ou até anular as próprias vantagens de potencial vendedor, concedendo isenções fiscais a perder de vista, facilitando ou até dando o terreno para a prospectiva montadora, e decerto outras vantagens mantidas in pectore.
           Nada mais neocolonial que os termos desta relação, em que a esperança futura de emprego de mão-de-obra local e longínquos benefícios, adiados quase sine die pela forma concessiva e necessariamente lesiva que estigmatiza a relação desde o seu princípio. Ali não se podia alimentar dúvidas entre o senhor inversor e sua equipe dirigente, vindos em missão colonizadora, e a malta dos empregados. Se tal tipo de transação existisse no século XIX, Karl Marx o teria utilizado em seus exemplos para conceituar a mais-valia.
           É hora de ocuparmo-nos da transação entre a dita Foxconn e o Governo brasileiro. Será com estranhável assombro – como diriam os nossos maiores – que um tal negócio possa ser acalentado por administração do Partido dos Trabalhadores.
           A Foxconn é uma mega-empresa, de origem taiwanesa, mas com implantação na China. Dentro do atual sistema de terceirização maciça dos fatores terra e trabalho, essa organização estaria, certamente, dentre um seleto grupelho de concorrentes para levantar o dúbio galardão daquela que impõe as mais severas condições para os seus empregados.
           Para garantir os maiores lucros, é imprescindível para esse gênero de empresa que os custos de fabrico sejam os mais baixos possíveis, de forma a ensejar o dumping respectivo nos grandes mercado de consumo. Se já é amplamente do domínio público a baixa remuneração e os longos horários de trabalho do operário chinês – uma das faces do dito milagre da RPC -, a Foxconn terá lugar de proa nesta categoria perante a qual empalidecem como quase anódinas as condições implantadas na hidrelétrica de Jirau pela Camargo Corrêa.
           Dessarte, além de  paga reduzida, a aludida empresa de Formosa coloca os seus operários – a que mantém em relativo isolamento - em galpões, para lá fruírem do dickensiano tempo de lazer que lhes é outorgado. As condições existenciais impostas pela Foxconn foram tão duras e absurdas, que houve um incremento na taxa de suicídios do corpo laboral. E qual o remédio concebido para evitar tão desagradáveis eventos ? Simplesmente, gradear as janelas.
          Segundo o perene formato do país de là-bas, não passa pela mente de nossos governantes incentivar a criação e crescimento de genuínas indústrias nacionais. Houve tempo em que o suposto vezo patriótico era objeto de mofa dos quadros neoliberais imperantes e de seus epígonos na imprensa.
          Quais são as precondições da Foxconn ? Segundo a Folha, para que se efetive o anunciado investimento de US$ 12 bilhões, escalonados em cinco anos, a megaempresa exige: a infraestrutura necessária para a montagem da prometida ‘cidade inteligente’ da firma, garantia de investimentos e mudança na legislação fiscal.
          Antes que se aprofunde o exame dos ‘pedidos’ da Foxconn, ter-se-á presente situação anterior como as capitulações no antigo Império Otomano – na fase em que passara a ser cognominado como o ‘homem doente’ do Continente europeu – e as concessões especiais, arrancadas pelas grandes potências de então, e notadamente a Grã-Bretanha, ao decadente ‘ Império do Meio’ chinês.
          De início, a Foxconn deseja que o Brasil fixe prazos para atender as demandas.Nesse contexto, lembra-se o tempo levado por outros países para viabilizar os projetos: oito meses, na RPC; e até dois anos, na Rússia e Índia.
          Diante das exigências, a Presidenta Dilma Rousseff nomeou grupo de trabalho para avaliá-las e, num prazo curto, estabelecer cronograma de negociação com a empresa.
          Integram o grupo de trabalho os Ministros Aloizio Mercadante (Ciência e Tecnologia) e Fernando Pimentel (Desenvolvimento), assim como a Receita Federal, BNDES e a Secretaria de Tecnologia da Informação.
          De acordo com a técnica de negociação da Foxconn, em que à cenoura da suposta transferência de tecnologia se contrapõem os bastões (ameaças) de possível mudança de parceiro, no caso México ou Argentina.
          Desse maneira, a generosa oferta inicial é colocada na mesa carregada de muitas precondições (e até de abandono da parceria), que estabelecem os incentivos e as alterações na legislação fiscal.
          Como os ipads (tabletes) ainda não estão classificados, buscam-se jeitinhos fiscais. Não tendo teclados físicos, não seriam notebooks.
          Outro ‘detalhe’ na oferta da Foxconn é que os citados doze bilhões de dolares (mais ou menos dezenove bilhões de reais) não serão disponibilizados inteiramente pela firma taiwanesa. Parcela não precisada desta soma viria dos sócios, obviamente minoritários, brasileiros, assim como na forma de incentivos fiscais e de financiamentos (já se compreende o ingresso do BNDES no grupo de trabalho).
          Não param aí as ‘solicitações’ da Foxconn: para a ‘cidade inteligente’ se exige cabeamento total de fibra ótica e malha de transporte que garanta escoamento rápido da produção.
          Além disso, o terreno deve ser grande para abrigar um cluster industrial (conglomerado de empresas que usam a mesma estrutura). Esse complexo industrial, a par dos componentes eletrônicos, deverá produzir equipamentos médicos e de automação, bem como abrigar usina de produção de energia fotovoltaica.
          Para a anunciada montagem (ajuntamento das peças respectivas, no modelo da Zona Franca de Manaus) do iPad no Brasil, previsto para novembro em uma das quatro unidades de que a Foxconn já dispõe no Brasil.
          Se o leitor pensa que as exigências findaram, é necessário para ela um regime alfandegário diferenciado para os seus produtos, bem como terminais exclusivos em portos e aeroportos.
          Como se vê, esse aporte de doze bilhões de dólares não é exatamente o que a Foxconn desejara que parecesse à primeira vista.
          Quanto às relações de patrão e empregado, o Ministro Aloizio Mercadante é, diante do comportamento da pregressa da megaempresa, de um otimismo comovente: “O Brasil tem legislação clara e garantidora dos direitos dos empregados, e a empresa vai segui-la rigorosamente”.
          Diante dessa assertiva, tudo parece resolvido, não é ? E se a coisa se prefigurar de outra forma, depois do sútil emagrecimento a que foi submetido o pacote inicial da Foxconn (além das delicadas ameaças de trocar de parceiro), quem terá o direito de reclamar ?



                                ( Fonte: Folha de S. Paulo )

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