sábado, 7 de maio de 2011

De Novo a Inflação

           Há várias formas de dizer que um problema não existe. No entanto, é interessante notar que nas leis da lógica – talvez não naquela formal e das teorias matemáticas – encontra-se dissimulado, mas irreprimível, um duende que se compraz em contestá-la, ou, o que vem a dar no mesmo, a jogar, na complexa maquinária de suas articulações teóricas, o soez bastãozinho da dúvida.
           Para afirmar a realidade de uma situação, o sujeito dispõe não apenas da assertiva, mas também dos recursos de expô-la sem a necessidade de mencioná-la diretamente (seja através da forma tácita, ou da alusão pelo subentendido). Sem embargo, a lista de opções não para por aí. Proporia ainda a modalidade da negativa.
           Negativa ? Como se pode admitir que refutar a existência de situação, processo ou fenômeno venha a implicar em maneira arrevesada de reconhecer-lhe a realidade ?
           Se o leitor me permite exemplo factual para demonstrar a minha tese, basta ter presente o modo com que o governo Dilma Rousseff trata do problema da ressurgência da inflação.
           Partindo da premissa de que a inflação na verdade não preocupa, porque está sendo duramente combatida, a Presidente, o Ministro da Fazenda e as demais autoridades, ao pensarem desanuviar o carregado horizonte inflacionário, de um modo perverso (no sentido lógico) não só contribuem para confirmar-lhe a ameaça, senão para torná-la mais presente.
           Em 29 de abril último, Dilma se compromete a “jogar duro contra a inflação”. Antes, em sentido similar, se referira à determinação da mobilização do governo nesse sentido.
           Já o Ministro Guido Mantega que, no governo Lula continuara a favorecer o crédito e as desonerações fiscais, quando aparecera inequívoca a luz amarela do perigo inflacionário, agora, transformado em austero combatente do monstro que ajudara a reviver, vem a público declarar que ‘o pior já passou’.
           Todo esse espoucar de fogos se caracteriza por dois aspectos. Um negativo e sólido: desde 2005, é a primeira vez que a inflação rompe o teto da meta estipulada pelo governo. Ao invés do limite oficial de 6,5% o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), acumulou uma variação de 6,51%.
           Posto que a diferença não seja grande, o aspecto relevante é que a carestia não está sob o controle oficial, malgrado as insistentes afirmações das autoridades competentes no sentido de que tudo se orienta para a normalidade.
           Muitos de meus leitores talvez pressintam nas declarações de oficial otimismo do Ministro Mantega  reminiscência de pregressas assertivas de atribulados ministros da fazenda da era pré-Real: ‘podemos respirar em maio’, diz o atual Ministro. E acrescenta: “Eu diria que nós estamos no chamado ponto de inflexão, ou seja, revertendo a inflação para baixo. Se continuarmos assim, já podemos respirar em maio, esperando um IPCA em torno de 0,45% ou 0,50%”.
           Assinalo, por oportuno, uma dupla ênfase: a realidade adversa, ou o dado negativo, a autoridade governamental reconhece, mas somente como espécie de estribo para um desenvolvimento futuro, que assegura, com inabalável confiança, de que irá ocorrer. É o segundo aspecto, a promessa de uma formosa realidade, que em breve, muito breve se materializará. Mutatis mutandis, trata-se do approach de Herbert Hoover, o presidente republicano que foi varrido pela Grande Depressão, e cuja solução para tal desgraça se resumia em dizer que a prosperidade estaria logo de volta (round the corner).
           O único problema com esse tipo de discurso – de Mantega e assemelhados - é que a sua repetição só tenderá a infirmar a confiança da opinião pública, pois esse tipo de filme ela já assistiu.
           Graças à Lula e à sua irresponsabilidade fiscal – de que é partícipe o Ministro Guido Mantega, confirmado nas próprias funções por Dilma – um pesadelo que pensávamos fosse coisa do passado, se configura em nosso dia-a-dia com ar desenvolto que nos deixa, a um tempo, perplexos e aborrecidos.
           Redespertar o dragão foi leviandade que não será decerto controlada com a facilidade que se apregoa. Nesse contexto, cabe relembrar o que nos diz a colunista Miriam Leitão em O Globo de hoje: “No mundo inteiro ela (a inflação) está subindo, só que a nossa é mais tinhosa, aprendeu manhas específicas com o longo passado inflacionário, como o de se reproduzir; nascendo de novo de si mesma, com a indexação. Quanto mais alta for e mais incerto o cenário, mais se fortalecem os músculos indexados.”
           Talvez o calcanhar de Aquiles do Plano Real tenha sido o de não dispor acerca da extinção gradual da peçonha inflacionária, latente na profusão dos índices.
           A felicidade – ou a benesse da ausência da inflação – será que só a sentimos sob o látego de quem se anime a negar-lhe a existência ?


                                                              ( Fonte: O Globo )

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