segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Para que servem as prefeituras ?

                                     

                  Objeto de reportagem do Fantástico,  é estarrecedora a diversificação geográfica do fenômeno retratado pelo folhetim dominical  da Rede Globo. Com efeito, presume-se que a organização televisiva  não teve qualquer dificuldade, pela saraivada de denúncias, e máxime nos grotões interioranos, de expor as mais gritantes irregularidades assinaladas quando das posses dos prefeitos, ao ensejo do dia primeiro de janeiro.
                   Esse antimodelo já havia sido de certa forma prefigurado pelo peculiar comportamento de prefeitos em fim de mandato. Com a distinção assaz importante de que nesse último caso não se tratavam de pequenas prefeituras em modestos e acanhados municípios.
                    Com efeito, o fenômeno se estendia a prefeituras próximas da capital do estado, com orçamentos importantes. Tenha-se presente, v.g., o caso de Duque de Caxias, em que o titular pleiteara a reeleição. Como essa pretensão lhe fora denegada pela maioria dos eleitores do município, o prefeito Zito julgou-se injustiçado pela cidadania, e, ao que se presume, fez por isso, por falta de pagamento, descontinuar a coleta de lixo. Esta mesmo postura terá sido seguida na baixada por outros executivos municipais.
                    Esse gênero de atitude, de cariz patrimonialista, transpõe para a administração pública uma espécie de direito feudal, que se arroga prerrogativas e cobranças só imagináveis em regimes de capitanias hereditárias.
                    Além da circunstância de que os prefeitos não são donatários dos respectivos municípios,  a situação criada, além de atingir a serviço obrigatório de saúde pública, cria desconfortos e perigos indizíveis, transformando as próprias ruas em lixões ao ar livre.
                  No entanto, o que revelou o Fantástico é ainda mais grave, pela confusão entre público e privado, que é uma das características do patrimonialismo na sua versão mais predatória.
                  Se é inadmissível esse total desrespeito à preservação de um serviço público, existe a fortiori amplo terreno para fundada e profunda inquietude quanto ao alcance e a extensão do desgoverno em tantos municípios.  Não é só receber prefeituras sem eletricidade por falta de pagamento da conta de luz. É também adentrar gabinetes com computadores sucateados (no aspecto digital), e com arquivos analógicos desaparecidos, submetendo o novo prefeito ao pressuposto absurdo de ter de partir do zero em termos de infraestrutura.
                  Nesse mesmo sentido, hospitais e ambulatórios são esvaziados de seus equipamentos, como se raios-x e leitos e lençóis hospitalares fossem propriedade da administração anterior.
                  Se é  escândalo público – e um desrespeito à cidadania – tal espetáculo reveste ainda maior gravidade pelo simples fato de ocorrer. Em meio as tropelias, apropriações, furtos descarados e descabeladas reivindicações de prefeitos em fim de mandato, não se pode permitir que o suposto pitoresco de repartições municipais abandonadas ao deus-dará nos faça perder de vista o fato primacial que esse bizarro cenário transmite ao telespectador:  de que no vasto interior do Brasil esse comportamento anômico é possível pela ausência do Estado de direito.
                 Por vezes, é difícil afastar a  impressão de que o Brasil não constitua em determinados rincões mais do que um conjunto de feudos, ou de povoados de escassas leis e ainda de menores direitos.
                 Ao deparar o sucateamento de prefeituras e de postos hospitalares, não se trata apenas de dificuldades iniciais ao exercício das funções das novas autoridades. Devemos pensar sobretudo nos sacrifícios impostos à gente humilde, que se descobre, uma vez mais, despojada dos poucos instrumentos e aparelhos sanitários que lhes cabem dentro da relativa penúria do próprio ambiente.
                  Essa pretensa confusão entre público e privado – que é uma das causas do sucateamento das prefeituras e de seus serviços – não pode ser admitida. E a única maneira de pôr fim a tal prática será a punição dos responsáveis. No momento em que o infrator tiver a certeza de que o castigo virá, com todo o peso da lei, e sem qualquer tratamento privilegiado, desaparecerão do noticiário essas vinhetas folclóricas, que na verdade hoje ressumam de sofrimento dos humildes, que são no modelo presente as grandes e esquecidas vítimas.    
                    Tais abusos, furtos e apropriações indevidas são decerto de extrema gravidade. Mas é ainda mais grave e mais inquietante que nada se ouça a respeito da necessária ação do Estado.

 

( Fonte:  Rede Globo )

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