Ouvi falar
dessa mítica região já faz tempo, quando o meu conhecimento de italiano ainda
capengava. Todo dia, no entanto, agradecia à sorte o fato de haver nascido onde
se fala o que o poeta chamara de última flor do Lácio, tão bela quanto inculta.
Lá estava a contemplar o velho Tibre, com planos de visitar as aldeias e
cidadelas do Lácio, e me animava a vantagem que o conhecimento do português me
conferia.
A cada linha
dos jornais locais, me surpreendia que, mesmo sem dicionário, pudesse bispar
algo daqueles longos e tortuosos parágrafos em língua italiana. Sem embargo,
meu caro leitor e eventual passageiro ilustre em participar de
experiências, modestas é verdade, mas
não destituídas de interesse, permita-me apresentá-lo a essa terra da Cuccagna que conheci nas verbosas folhas
do Messaggero, um jornal romano.Ao invés do significado que ía colhendo, com paciência e imaginação, pela leitura, ora difícil, ora suspeitamente fácil, a palavra cuccagna me ficou como um travo na garganta. Que diabos queria dizer ?
A pesada névoa da ignorância me acompanharia até que chegasse ao trabalho, e buscasse no dicionário o que significava. O verbete do Zingarelli[1] não me desiludiu: país fabuloso em que reinam delícias do todo gênero.
Acudiu-me, então, que cuccagna retrata a terra da fartura. O desenho da cornucópia se apresenta como o complemento natural de tal visão.
Seria, assim, compreensível que pensasse no significado deste tão humano desejo que é o de conhecer paragens e regiões onde morem a abundância e a felicidade.
A fartura é uma noção relativa. Quem a tem, ou não mais a procura, ou o faz sem demasiado empenho. Os povos ibéricos nos dão a respeito uma boa ideia. Os conquistadores espanhóis herdaram as imensas riquezas dos impérios asteca e inca. Por sua vez, aos portugueses coube de início a faina de esgotar o pau-brasil das costas da terra da Santa Cruz.
Mas a gente de São Paulo, nos séculos subsequentes, não quis acreditar em tão cruel diferença na sorte. Em entradas e bandeiras eles se embrenharam pelo imenso interior, na busca teimosa do Eldorado, com a sua prata e esmeraldas. Sem o saber, desceram rios, adentraram selvas e sertões, arrostando fadigas e desafios mil.
Sob falsas premissas, mostraram do valor da ilusão, que fez com que os bandeirantes devassassem céus e terras ignotas, matas antes impenetráveis e toda espécie de adversidade. Nessa procura da riqueza em míticos reinos mostrariam coragem e determinação, como na expedição de Pedro Teixeira, enviada por Jácome de Noronha, governador do Maranhão que, ao adentrar São Francisco de Quito, após atravessar a Amazônia, causaria estupor e raiva ao Conselho das Indias, no lusco-fusco da União Ibérica.
Com o denodo da ambição, eles rasgaram plagas imensas e, sem o saber, desenharam com traços portentosos um país-continente, nos grandes espaços que demoram sob a cordilheira do Pacífico.
A ilusão pode ser causa de ventura e de satisfação ? Sim, e o Brasil é prova disto. A gesta dos bandeirantes, enfrentando enormes obstáculos nos sertões desconhecidos, atravessando selvas na busca do Eldorado e das minas de esmeraldas, lançaria as bases do Tratado de Madri e do uti possidetis. São, entre outras, as bandeiras de Bartolomeu Bueno, Antonio Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Paschoal M. Cabral, Silva Braga e Manuel de Borba Gato.
Se a meta, quando voltada para a descoberta de tesouros e minas, não correspondia à realidade, a grande contribuição das bandeiras saídas de São Paulo estaria no processo que desencadearia.
Os grandes espaços interioranos rasgariam, dessa maneira, os estreitos confins do tratado de Tordesilhas, e desenhariam as extensões que tão bem nos documentam os livros de Jaime Cortesão sobre ‘Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri’.
[1] Assim como Larousse é sinônimo
de vocabulário na França, Webster nos Estados Unidos, Zingarelli o é na Itália.
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