Eis uma questão relevante, de grande interesse público. Ela não pode ser consignada às páginas internas dos jornais, à letra pequena das informações de suposto cunho técnico.
Por isso, a reportagem de O Globo na página principal do caderno Economia já trabalha no sentido de sua divulgação.Para tanto, é decerto oportuno que exponha a matéria sem rebuços, dando ao leitor os instrumentos indispensáveis para que adentre essa área, de forma a que possa transpor o cipoal da parte que não prioriza a informação, mas só lança um véu sobre o que está realmente em jogo.
O remédio genérico representou um grande conquista da sociedade. Como todo avanço ele não aconteceu por acaso. E em sendo um grande passo, com palpável e inegável proveito para as classes mais necessitadas – e quando alguém depende de medicação de uso continuado, para controlar uma condição preexistente, ou para contribuir para a cura de um grave mal, cresce a necessidade que passa a ir muito além dos meios econômico-financeiros do paciente – será forçoso compenetrar-se que esta necessidade se torna dupla.
Não se paira nas nuvens, nem se trata de temas esotéricos, àqueles que teriam acesso apenas os iniciados.
A luta pela implantação do genérico no Brasil não ocorreu por acaso,como essas mulas sem cabeça ou lobisomens, que assombram as noites da superstição. Por isso mesmo, porque houve um líder, um ministro da saúde que,mesmo sem ser médico,tornou o genérico acessível para todas as camadas sociais. Tal contribuição pelo seu porte assustou a concorrência.No entanto,ao ser candidato à presidência da República José Serra,de certa maneira, ajudou sua adversária petista, realizando campanha medíocre, que parecia envergonhada da sua ultra-capacitação administrativa e política.
Não é aqui o lugar para tratar de suas vicissitudes políticas na campanha de 2010. Haverá no futuro livros sérios que a apresentem, incluindo as traições e os intentos de cristianização. Basta na matéria dizer que, em termos de genérico, as oficinas da má-fé trabalharam a pleno vapor para desfazer de uma perigosa verdade, com implicações desastrosas para o lado antagônico, que nada tinha a exibir em termos de magnitude de realização.
A verdade, no entanto, é um bicho tinhoso, com mais de sete vidas. Se o célebre elogio de Beaumarchais à calúnia tem melancólico fundamento, a verdade volta sempre e com renovado vigor.
Esse parêntesis é fundamental, porque o genérico tem uma importância que vai muito além da personalidade de Serra que , com grande mérito, o tornou realidade no Brasil. E não se fala aqui de coisas de somenos: o genérico abriu para muitas camadas da sociedade – e em especial as menos favorecidas – uma oportunidade não só de condições dignas de vida, senão de entrada em áreas, nas quais a sua extensão efetiva deixava de ser quimera para ser realidade do dia-a-dia.
Por isso, quanto mais luz se fizer nessa questão, melhor estaremos servidos. O genérico é uma conquista da sociedade. Não é um tecnicismo qualquer, nem tópico bizantino, abstruso e extemporâneo de dócil condição para ser encafuado nos dédalos das discussões do jurisdicismo.
Ao contrário disso, é uma questão de vida e morte para o Povo. Não dá para mascará-la tanto nas vias tortuosas das alegações dos advogados dos grandes laboratórios, quanto nas frases de efeito que só almejam desviar a atenção de o que está realmente em tela.
Darei abaixo um exemplo disto.
Antes, porém, cabe visualizar o entorno de onde vicejam tais empresas, só concebíveis se longe dos espelhos implacáveis da opinião pública.
Basta sair à rua e caminhar ao longo de ruas e avenidas de grande movimento. Nelas costumam abundar farmácias e drogarias. No passado, havia disposições que as diferençavam. Hoje, com o predomínio das grandes cadeias, a denominação se torna quase irrelevante.
Com efeito, o que aqui importa é o número desses estabelecimentos, e a sua disponibilidade em todos os dias da semana. Para quem já viveu em países em que as farmácias estavam mais fechadas do que abertas, essa característica do ramo farmacêutico no Brasil é, decerto, algo de grande serventia. Longe está o tempo em que, em fins de semana, alguém se via forçado a longas peregrinações para adquirir medicação urgente, que necessita ser adquirida no dia mesmo.
Se o elogio será devido, é preciso, no entanto, conscientizar-se de o que significa a alentada oferta no campo das farmácias para o consumidor. Se é grande a sua utilidade pública, não devemos esquecer-nos dos fatores econômicos que condicionam a sua pluralidade.
A concorrência no campo farmacêutico não é uma disputa entre redes especializadas em altruístas benfeitorias. Não há negar que a atividade é de utilidade pública, mas tampouco podemos ignorar quão lucrativo se afigura este ramo da economia.
Com efeito, como enxameiam as farmácias – e as grandes cadeias, ao invés de encolher, se multiplicam a ponto de o poder municipal cogitar da restrição nas licenças de localização – salta aos olhos a lucratividade deste segmento.
Todo brasileiro não ignora que os remédios não são baratos. Por contingência economico-financeira, a maioria dos brasileiros têm de privilegiar os medicamentos genéricos – que apenas assinala o princípio ativo – ao invés do remédio de referência. Essas medicações de marcas são muito mais caras do que os genéricos, e a preocupação do paciente é de buscar um genérico produzido por algum laboratório que lhe mereça maior confiança. Nesses termos, a sua opção terá duas condicionantes: a bolsa (que o induz a optar por um produto mais barato) e a experiência (que o leva a preferir um determinado laboratório ).
Estando previsto para este ano de 2012 o vencimento de inúmeras patentes para o tratamento de afecções e enfermidades que vão de náusea e enxaqueca à leucemia e imunosupressores para transplantes, são dúplices as premissas básicas na matéria. Primo, não são questões a serem relegadas a interesses particulares; secondo, por revestirem interesse público, devem receber atenção pró-ativa do Ministério da Saúde e do Ministério Público da União.
Gostaria, a tal propósito, de citar a declaração do sr. Antonio Brito, conforme referida em O Globo de hoje. Sua Senhoria é presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) : “Não existe o bem e o mal nessa história. Os dois lados estão defendendo interesses comerciais.”
Peço vênia para discordar. Como refere a matéria de O Globo, os grandes laboratórios tradicionais buscam na Justiça aval para a tese de que, mesmo com as patentes vencidas, ainda teriam direito à exclusividade sobre os dados clínicos apresentados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para registro dos medicamentos por um período de dez anos.
No caso, há uma tentativa oportunista de aumentar as vendas de laboratório tradicional, em detrimento da produção do genérico respectivo. Esses grandes laboratórios batem em várias portas para a consecução de seu escopo, que é o de prejudicar a alternativa genérica. Depois da Justiça, a bola da vez é a Anvisa.
Acerca de uma ação que visa à não liberação pela Anvisa para consulta às informações apresentadas pelo laboratório Astrazeneca no processo de aprovação do medicamento Crestor (controle do colesterol), ora no Tribunal Regional Federal de Brasília, o advogado Arystóbulo Freitas da Pró-Genéricos afirma que a tese dos laboratórios de referência não tem consistência lógica: “O que eles estão alegando é que a autoridade sanitária não pode ter acesso aos dados, o que é um absurdo.”
Diante da injustiça, o silêncio é inadmissível. O interesse aqui é público, e as tentativas de colocar o bem público, assegurado pela disponibilidade do genérico, no mesmo nível do interesse comercial (levado à tentação do aumento dos lucros pelos altos preços dos medicamentos de referência) carecem de ser combatidas com renovado vigor.
É uma questão vital para o brasileiro. Não é coisa para empurrar para debaixo do tapetão. A Presidente da República, cuja motivação social tem sido tão presente, não pode omitir-se nessa matéria. É hora de atalhar mais uma tentativa no sentido de restringir os efeitos do bem, aqui epitomizados pela conquista dos genéricos.
( Fonte: O Globo )
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