Se a censura à imprensa no Brasil não é imposta pelo Estado, como ocorria durante a ditadura militar, o leitor deste blog não terá decerto ilusões sobre a plena validade da cláusula constitucional, epitomizada nos artigos 5º, inciso IX, e 220, caput e parágrafos primeiro e segundo.
A mordaça imposta ao Estado de São Paulo pelo desembargador Dácio Vieira (TJ-DF) já anda por volta do quarto mês de duração. Na morosa tramitação judiciária, que favorece os censores judiciais e seus beneficiários – no caso Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney, indiciado pela Polícia Federal pela Operação Boi Barrica, que logrou impedir a publicação das reportagens investigativas do Estadão – hoje esta simbólica mordaça a um jornal que tanto se distinguiu na luta contra a censura do regime militar aguarda a liminar do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso.
Como este blog tem repisado – e ao contrário do que pensam alguns – é mais do que tempo de ser formulada súmula vinculante que, com base neste caso, crie as condições não só de cumprir o anelo do constituinte de 1988 (censura nunca mais !) mas também de extirpar esses sucedâneos da censura às comunicações, audaciosa e desavergonhadamente impingidos aos órgãos de comunicação e à opinião pública, sob as enganosas vestes de medidas acautelatórias judiciais, que, na verdade, representam uma nova e igualmente abominável forma de censura. Como a hedionda hidra, suas cabeças repontam no Maranhão, no Amapá (não por acaso dois estados ainda submetidos à oligarquia dos Sarney), Mato Grosso, e em muitos outros estados, nas capitais, em cidades interioranas e nos grotões, numa evidência de quão largo é o desrespeito à cláusula pétrea constitucional.
Se a sentença, ilegal e inconstitucional, de Dácio Vieira, que deu vida tão longa à censura de publicação pelo Estado de São Paulo ensejar afinal a redação pelo STF de súmula vinculante que dê um basta a tais abusos, poder-se-á afirmar que, no caso em tela, foi um mal que veio para produzir um grande bem. Assim, a tardança na devida justiça aos direitos do Estado – e de toda a sociedade – não terá sido em vão, ensejando por fim a estruturação de instrumental para dar cabo, com a presteza que a proliferação de tais manobras inconstitucionais está por exigir, de forma a que o ocorrido com o Estado de São Paulo constitua a base para que, em todos os municípios do Brasil, a censura não possa mais vestir a toga judiciária.
Em outros países da América do Sul, o assédio à imprensa e aos meios de comunicação em geral tem revestido um aspecto sistemático e estruturado. O principal responsável desse ataque é o coronel Hugo Chávez, que aspira por certo a inserir-se na melancólica tradição venezuelana dos señores presidentes a título vitalício.
Segue o caudilho a cartilha referendária. Não faz muito e por força da própria insistência, logrou afinal o direito à perpetuidade na reeleição. Assegurado o próprio domínio da Assembleia Legislativa, do Judiciário e do Ministério Público, Chávez trata agora de sufocar a oposição através do controle dos órgãos de comunicação.
A profusão das disposições inseridas , mesmo em legislações que não sejam pertinentes ao tema, além de apertar o cerco, cria o clima indispensável para a atemorização e o cerceamento ‘voluntário’ do direito de informar, mediante a chamada auto-censura, que é filha da imprevisibildade do poder atrabiliário e da consequente geral insegurança.
Chávez, na sua logorréia neopopulista a que intitula de bolivariana, na verdade nada traz de novo para a América Latina. Enquanto desconstroi a economia da Venezuela e acirra, pela própria incompetência, as crises setoriais que infernizam a vida da população, trata de desviar a atenção da sociedade, em nada quixotesca investida contra os moinhos de vento das comunicações. A par de pôr fora do ar a 34 emissoras de rádio, Chávez já fechou a mais antiga rede de tevê do país (RCTV) e ora se apresta a um cerco,em alternâncias seja violentas, seja kafkianas da vítima da vez, no caso a Globovisión.
Embora a ajuda dos petro-dólares tenha minguado – malgrado a reaparição do chamado homem da mala em comprometedor vídeo para o casal Kirchner, tão obrigado à antiga generosidade do caudilho - não se poderá dizer que o coronel do putsch malogrado de 4 de fevereiro de 1992 não tenha feito escola, em termos de ‘amor de malandro’ à imprensa (o dito ‘quarto poder’) na América do Sul (e alhures).
Dessarte, Cristina e Nestor Kirchner desenvolvem o acosso aos meios de comunicação que não rezem pela sua cartilha em ofensiva que, se não dispensa a truculência peronista abominada por Jorge Luis Borges, mostra a versatilidade de três linhas de ataque: a nova lei de meios audiovisuais (o casuismo sofisticado para golpear economicamente o grupo Clarín); a crescente pressão sobre Papel Prensa (a empresa que fornece insumo básico a 170 jornais); e a instrumentalização do conflito sindical, valendo-se de táticas de mão pesada, que dificultam a distribuição dos jornais.
Por sua vez, no Equador de Rafael Correa, a Assembleia Nacional prepara uma lei de comunicações, que estará mais conforme ao ‘novo Equador’. Será estabelecido sistema de regulação e controle da comunicação para superar o que o Presidente discípulo de Chávez caracteriza como excessos de “imprensa medíocre e corrupta”.
Não se pode ainda prever a extensão do controle estatal sobre as comunicações que será viabilizado pela nova legislação. Muito dependerá da atuação de Conselho de seis membros a ser instituido pelo estatuto em apreço.
As perspectivas não se afiguram das mais alvissareiras para a liberdade de imprensa, eis que o conselho poderá aplicar sanções administrativas contra jornalistas e meios de comunicação, não se excluindo o eventual cancelamento da licença.
Se é cedo para opinar sobre o grau da repressão, não é necessário ser um cinéfilo para adivinhar que o filme anunciado deve calcar antigos vezos de outras películas que não caíram nada bem junto a jornalistas e opinião pública.
(Fonte: O Globo )
domingo, 29 de novembro de 2009
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