quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Reflexão sobre os Tempos

Marco Túlio Cícero, na sua primeira oração perante o Senado de Roma contra Lúcio Sergio Catilina, insere a famosa frase ‘O tempora, O mores’ (oh tempos, oh costumes). O cônsul Cícero precisou de mais três discursos para obter do Senado a autorização para combater e debelar a conspiração de Catilina. Esta célebre queixa sobre o estado dos costumes na república romana data de 63 a.C. Os malogrados planos de Catilina estão há muito esquecidos, as deploradas condições dos costumes romanos tinham longo caminho de descida pela frente, e – excluído o vocábulo catilinária - talvez o único que reste na memória ativa seja a exclamação acima. Tornou-se verdadeiro lugar-comum, presença quase obrigatória em incontáveis petições e sentenças, em que o autor (advogado ou magistrado) apela para suas fumaças de latinismo, com vistas a acoimar a reprovável situação dos tempos presentes.
Esta insatisfação com a atualidade aparece igualmente em filme de René Clair. Há um personagem, representado por Michel Simon, que, vestido com roupas antiquadas, surge a intervalos regulares na película (que é uma corrida ao revés através do tempo) a entoar loas sobre os bons velhos tempos. Na veia crítica do cineasta francês, Michel Simon personifica o saudosista, que será a outra face da medalha de quem critica as deploráveis condições da época em que vive.
Como se vê, desde a Antigüidade Clássica, nos tempos havidos posteriormente como áureos da civilização greco-romana, havia gente – e do porte de Cícero ! – que não estava satisfeita com o seu mundo. Daí se poderia passar para outra observação – igualmente estigmatizada de lugar-comum – tão cara aos franceses, que afirma, com a grandiloqüência gaulesa, que ‘não há nada de novo debaixo do sol’. Esta relativização histórica da originalidade motivou o queixume do romântico (e obscuro) poeta Rollo, que no século XIX se lamuriava com o fato de haver chegado demasiado tarde (trop tard) em um mundo já muito velho (trop vieux).
No entanto, defronte do triste espetáculo que a atualidade brasileira nos proporciona, cabe um momento de dúvida e de hesitação. Deveríamos continuar a nos aferrar ao paradigma de que os fenômenos humanos não mudam na sua essência, que o saudosismo é apenas a manifestação recorrente da insatisfação passadista, do gênero do poema de François Villon (1431-1489), que pergunta nostálgico “aonde estão as neves de antanho”? Convenhamos que a manutenção deste apego doutrinal se torna extremamente difícil se o confrontarmos com a realidade de nossa Terra de Santa Cruz.
Impressiona a criatividade brasileira voltada para o ganho ilícito. Não há limites para esta prática, que prolifera nas mais diversas atividades (apropriação indébita e adulteração de combustíveis; indústria de liminares, que não se restringe a áreas geográficas, como os jornais e a tevê o demonstram; neologismos que procuram atender à inventiva dos criminosos de colarinho branco: v.g., laranjas; uso indevido e recalcitrante em atividades médicas (cirúrgia plástica; lipoaspiração); a indústria dos recursos, que tende a tornar a figura jurídica da coisa passada em julgado (e da condenação definitiva) como uma improvável ficção (sob a condição, é lógico de dispor de bons advogados). Consoante a dadivosa Carta de 1988 – que nunca se liberou de sua condição genética de filha de Frankestein -, para as cortes pode-se dizer que a presunção de inocência persiste, não obstante sucessivas condenações, diante da quase inatingível condenação definitiva (mesmo para réus confessos) – atendida sempre a regra sine qua non de ter a tiracolo um bom advogado. Senão, comine-se todo o rigor da lei, como sofreram o homem que arrancou uma casca de árvore e a mulher que pichou a última Bienal.
Este desprezo do ético, do honesto, do morigerado, da obediência à lei, grassa por toda parte. Assistimos a fenômenos antes impensáveis como o da greve dos juízes, o da falsificação dos medicamentos, o furto de flagelados (Vide Santa Catarina, com a agravante de que as subtrações não se circunscrevem às classes de renda mais baixa). A expressão : “ilegal e daí ?” reflete a desordem urbana que caracteriza a moribunda administração César Maia. O Legislativo, com a sua dissonância perante a realidade nacional (em tempos de crise, a farra que incha as câmaras de vereadores, os contínuos aumentos de remuneração (em triste descompasso com o mísero salário dos professores,etc.etc.). Os exemplos de anomia se multiplicam e são revoltantes (para aqueles que preservam a capacidade de enojar-se com a-ético, o abuso de autoridade, o desonesto,etc.).
Tudo isso, dirão alguns, terá sido prenunciado pela notória lei de Gerson.
Será mesmo ? Depois do instituto da reeleição no governo anterior, na ainda sub-judice questão do mensalão, na proposta de abolição do Senado (V. escândalo de Renan Calheiros) o Povo (em nome de quem todo poder emana) precisará de muitos Diógenes com as respectivas lanternas para encontrar algum varão republicano que governe não só com a caneta mas também com a palavra e o exemplo.
Sem dúvida, o Brasil não está fora do mundo. Vivemos oito anos (ou quase) em que a tortura voltou a ser um instrumento da justiça. Graças a Bush, Cheney et al. a sociedade do século XXI tornou às masmorras e calabouços do século XVIII, de que a pena de Beccaria anunciara a superação. Aguardemos com esperança o que nos reserva Barack Obama. Por quanto tempo, a interrogação incrementada (nas palavras da direita raivosa) de Guantánamo e Abu Ghraib prevalecerá ? E o retorno ao velho patrimonialismo, com o leilão de indicações para cargos públicos, vamos limitá-lo apenas à velha Chicago ?
São tempos escuros (tempi bui), em que os meliantes tomam ares de gente proba, a despeito de escarnecerem dos honestos, que desejam transformar em motivo de risota.
Diante do sinistro cortejo a que somos forçados a assistir, seria o caso de pedir tempo, antes de emitir opinião acerca de nossa verdadeira situação?
Em termos de corrupção e da arrogância dos patifes, o atual desconforto seria apenas falta de um sentido de perspectiva histórica? Significaria tão só a velha frase de Marx? Ou será mais uma nova contribuição do Brasil ao mundo ?

Um comentário:

Jose Marcos disse...

Nossos efusivos cumprimentos! Estás arrasando! Que bom!
Cris e J.Marcos