segunda-feira, 14 de julho de 2008

Calçadas Cariocas

As ruas na Atenas antiga, mesmo no período clássico (séculos V e IV a. C.), pela falta de órgãos prepostos à organização do trânsito (em que pedestres, vendedores, carregadores e marginais se misturavam a carros de boi e aos carros menores, que transportavam o condutor e um passageiro) eram a própria imagem da confusão, representando para os incautos inegável perigo. A preocupação com tais ameaças potenciais à incolumidade física dos transeuntes, fossem eles cidadãos atenienses, estrangeiros residentes (metecos), visitantes e até escravos (em geral em mandados de seus amos e senhores) era tamanha que a religiosidade popular confiou ao deus Apolo, dentre os seus múltiplos atributos, o de Aguieús, vale dizer, guardião das ruas e das estradas.
A leitura dessas descrições incidentais das condições prevalentes nas vias e vielas da Antigüidade, encontradas em Diógenes Laertius e Pausânias, entre outros, me trouxe à mente, imaginem só, não apenas a sovada reflexão de que não há nada de novo debaixo do sol, mas também e de forma talvez mais imediata, qual seja a lembrança da situação do trânsito no Rio de Janeiro e, em especial, de setor que mereceria menos atenção das diligentes autoridades municipais e estaduais.
Talvez em outros tempos desta mui heróica cidade de São Sebastião fosse possível visualizar as calçadas como locais de refúgio e entretenimento dos cariocas, em que pudessem caminhar de um quarteirão para outro, contemplar vitrinas, passear os seus melhores amigos (refiro-me, é bom que se frise, aos nossos irmãos caninos), ou simplesmente vagar pelos logradouros.
É decerto reflexo desses míticos bons tempos a designação de Passeio Público, em que nossas antepassadas costumavam deambular, cruzando nas largas calçadas com jovens cavalheiros, que ali também estavam para o exercício de namoro de vista (não confundir com os conhecimentos de vista e de chapéu, de que nos fala Machado de Assis).
Creio, no entanto, que um recuo tão longínquo não é necessário, para que a memória da calçada como espaço aprazível e seguro continue a semelhar válido. Penso na Ipanema dos anos cinqüenta e princípio dos sessenta, e até em Copacabana, embora a transformação desta em formigueiro humano já se desencadeie na década de sessenta.
Para circunscrever a recordação, a Ipanema de então configura o bairro de classe média, de que temos tantos similares seja no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Era uma Ipanema de ruas tranqüilas, desde a ventosa e deserta Vieira Souto até os seus limites com o Leblon, no Jardim de Alá freqüentável por crianças e babás, e o canal de águas correntes, zelado pela Prefeitura por causa da boa saúde dos peixes da Lagoa Rodrigues de Freitas.
Os extensos quarteirões de Ipanema eram ocupados por casas de família, com respeitáveis quintais. Havia sorveterias, como a do Morais, cinemas de luxo como o Astória, e poeiras, como o Ipanema e o Pirajá, bares como o Zeppelin, e por aí afora. Com exceção de negócios, bares e alguns moradores ilustres – de que gastas placas de metal recordam a antiga existência – todo o resto está soterrado por uma série de edifícios, super-mercados, pequenos e médios shoppings, bancos e farmácias.
Para quem se propôs discorrer sobre as calçadas, o leitor há de perguntar-se, não seria toda essa enumeração uma digressão ? Talvez, mas será necessário ter presente que as ditas calçadas ou passeios representam a margem dos quarteirões que desvirtuou o incansável progresso.
Antes sossegadas, quase sonolentas, as calçadas de ruas asfaltadas, ou de paralelepípedos, ou até de terra batida, como espelho que são da realidade, se mostram agora a margear as principais artérias e as vias menores, todas asfaltadas, com os ocasionais buracos e desníveis.
Para mudar a personalidade da calçada também contribuíram as obras da prefeitura, que na Visconde de Pirajá, a principal rua do bairro, as alargaram bastante, agregando espaços calçados de tijolos especiais, que não parecem ter a durabilidade das pedras portuguesas.
Se o transeunte, contudo, pensava que se lhe abria um espaço maior, a evolução – ou involução, de acordo com o ponto de vista – da circulação iria indicar que tal suposta amplificação do espaço do pedestre deveria ser bastante qualificada.
Esta crônica me está saindo maior do que o previsto. Que me releve o eventual e paciente leitor o possível incômodo. Assim, a par de prometer uma continuação à presente, que me sejam permitidas duas observações conclusivas.
A primeira concerne à apresentação dos novos personagens, cujos títulos me é difícil discutir, para inclusão no espaço das calçadas (ciclistas, camelôs, extensões de restaurantes e bares, os sem-teto, os mendicantes e os assaltantes).
A segunda observação stricto sensu constitui, em verdade, um apelo. Considerando que a realidade dos tempos modernos inquieta a muitos; levando em conta que dentre as ausências por muitos notadas se encontra a falta da autoridade não belicosa, mas dissuasiva – naqueles anos dourados simbolizada pelas duplas de PMs Cosme e Damião – ; e sendo por fim a assaz comum tentativa de atribuir a Deus o encargo da segurança carente de especificidade, quiçá fosse o caso de se cogitar de um substituto atual para o velho Apolo Aguieús, já aposentado de tais funções há quase dois milênios.

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