O desenvolvimento chinês, a rapidez do crescimento da República Popular da China, apontam decerto para um grande futuro. Sem embargo, a despeito dos sustentados índices desse avanço, e da progressiva atenção que a RPC vem recebendo do governo e povo americanos, maior conhecimento da vasta realidade daquele país continental há de mostrar que o caminho a ser percorrido ainda é longo. Na verdade, muitas se afiguram as disparidades existentes, reflexo não só de certos vícios de origem, mas também da própria celeridade do processo.
Talvez o fator principal das desigualdades resida na contradição básica existente no sistema político que preside a tal processo. As chamadas reformas introduzidas por Deng Xiaoping levaram a que o partido comunista chinês presidisse à implantação do capitalismo na China, como meio de aceleração do desenvolvimento industrial e tecnológico, dentro da observação das normas de livre mercado.
As resistências iniciais da ala veterana foram gradualmente sendo superadas. Para tanto, foi importante a contribuição trazida pelo Primeiro Ministro Zhao Ziyang (1980-87), cuja capacidade suasória logrou convencer os conservadores acerca da factibilidade doutrinal da liberdade econômica no quadro do poder de PCC. Quando Deng, em 1987, o colocou como Secretário-Geral do Partido, Zhao acompanhou de perto o processo de liberalização política que culminaria nas manifestações de protesto na Praça Tiananmen em 1989.
Por não demonizar o movimento, como o fizeram oPremier Li Peng e o vice-premier Yao Yilin, Zhao entrevia possibilidade de diálogo com as novas lideranças. Descobria na democracia um fator importante para a neutralização da corrupção, que tanto prolifera em sistema de partido único como o chinês.
Infelizmente, o velho Deng favoreceu a ala de Li Peng, com a sucessiva repressão militar e o massacre da praça de Tiananmen. Zhao foi afastado da secretaria geral e teve a prisão domiciliar decretada. Assim permaneceu até a sua morte em 17 de janeiro de 2005. O seu pensamento continuou a motivar o temor da hierarquia, a ponto de que o falecimento de Zhao Ziyang tenha sido tratado sob estrito sigilo.
Prevaleceu, portanto, a inércia na manutenção de um sistema híbrido, em que a liberdade econômica deve coexistir com o autoritarismo político do PCC.
Como se há de intuir, a corrupção, se não abriga preconceito contra quaisquer regimes políticos, encontra condições quase ideais de florescimento em sistemas repressivos burocrático-autoritários, sem o controle de livres meios de comunicação e, por conseguinte, sem opinião pública aberta e conscientizada.
A corrupção na China, como os esporádicos processos contra funcionários partidários de baixa e média hierarquia o demonstram, grassa em todos os níveis. O episódio abaixo relatado serve de exemplo, não só quanto ao caráter odioso que pode revestir, mas também da sobrevivência de aspectos primitivos em termos de documentação.
Durante a maior parte de sua educação Xue Longlong foi acompanhado de ano para ano, de colégio para colégio, por uma pasta marrom, com o carimbo “estritamente confidencial”. Dentro dela se achavam as notas, os resultados de exames, avaliações por colegas estudantes e professores, seu requerimento de admissão ao Partido Comunista e, especialmente, a prova de sua colação de grau na universidade.
Todos os chineses com curso ginasial têm este arquivo pessoal. Como fornecem o histórico de conquistas e fracassos, tais maços são insubstituíveis, eis que dão a potenciais empregadores, funcionários governamentais e outros a oportunidade de aferir o valor do indivíduo. Dada a sua importância, são guardados sob chave em armários de repartições governamentais, escolares e gabinetes de trabalho.
Há dois anos atrás, o maço de Xue desapareceu. Junto com o dele, sumiram dez outros maços, todos eles de universitários formados com louvor em 2006. Todos eles têm origem em famílias pobres, na cidade de Wubu, no centro-norte da China, nas margens do rio Amarelo.
Com o desaparecimento das pastas marrons igualmente se dissipou o respectivo futuro. Consoante a versão dos funcionários competentes, o extravio se deveu a obras realizadas por operários no local. No entanto, de acordo com as vítimas, o mais provável é que funcionários tenham furtado os maços para vendê-los posteriormente a alunos com notas medíocres, à cata de uma nova identidade e de melhores oportunidades de emprego. Essa forma de comportamento de funcionários é fenômeno encontradiço em várias cidades chinesas.
Atualmente, Xue – que esperava trabalhar em estatal petrolífera – é agente imobiliário porta a porta; Wang Yong – que pretendia ser professor ou funcionário bancário – está desempregado; Wang Jindong – que aspirava lugar em estatal de produtos químicos – é operário de construção, com salário inferior a dez dólares por dia.
Em matéria de abusos dentro do Partido Comunista, o grupo de funcionários locais é o mais acusado de corrupção. Não obstante as promessas dos principais líderes de extirpar a corrupção, a partir do próprio Presidente Hu Jintao, continua a ser decepcionante a experiência de pessoas prejudicadas, que não se conformam e reivindicam a intervenção oficial. No caso de um universitário recém-formado, que descobriu em 2007 haver ‘desaparecido’ o seu maço, a reação das autoridades não se pautou pelas declarações do líder supremo. Como no passado, culpabilizaram a vítima. Além de denegar-lhe qualquer investigação, colocaram os pais da vítima sob vigilância. Dentro do costumeiro acosso aos ‘criadores de problemas’ se seguiram repetidas detenções desses familiares. Por outro lado, um grupo de cinco pais – que acreditara nas promessas das autoridades – ao tentar apresentar petição ao governo federal ficou detido em cadeia ‘informal’ em Beijing, durante nove dias.
Assinale-se, outrossim, que os formandos singularizados pelos funcionários corruptos costumam pertencer às camadas mais pobres da população chinesa. A sua educação universitária exige grandes sacrifícios da família, com pesado endividamento. No caso de Xue, o seu pai ficou devendo mais de dez mil dólares, o que corresponde ao dobro do valor venal de sua pequena propriedade agrícola.
Tudo isso parece ter saído de um romance francês do século XIX, pela insensibilidade dos poderosos, rapacidade de burocratas desonestos, e injustos padecimentos dos jovens protagonistas. Há apenas três diferenças a registrar: a história é dos dias de hoje, não é ficção e o final não é feliz.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
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