O assunto tem sido tratado por este blog, e não há de surpreendê-lo, porque constitui um dos principais defeitos – ou características – da gente brasileira. Não creio, no entanto, que, no passado, o tenha versado de modo tão exclusivo quanto tenciono fazê-lo a seguir.
No Globo de hoje nos deparamos com cabeçalho que não faria qualquer sentido em outro país: “Desmatamento é maior em ‘áreas de proteção’”. Por que ao ler tal disparate, não nos rebelamos? Como podemos aceitar que seja inteligível o maior deflorestamento logo em áreas ditas de vigilância ?Convivemos com tal triste realidade e – o que é pior – a aceitamos tacitamente, por estarmos demasiado inteirados deste vezo oficial de atribuir uma função determinada a um título, que é colocado, ou em um vazio institucional, ou com a inconfessa intenção de substituir-se a um dever específico.
Esse traço sociológico nos vem de longe, das famosas Ordenações Filipinas, em que se coligiam as determinações de el-Rei para a colônia. Lendo essas coleções de leis, se tem a impressão de sociedade em que a organização social, as regras e as penalidades consequentes, se acham minuciosamente descritas.
Sem embargo, a tradição que nos resta é de um exercício muita vez literário que, falto de fiscalização, por deficiências de número e pela extensão da área, terão transmitido aos súditos a expectativa de que muitas de tais normas seriam de implementação quase inexequivel e, portanto, asseguravam aos colonos a virtual certeza de que podiam desconsiderá-las pela alta probabilidade de que as severas penas ficariam no papel.
Não é despropositado, por conseguinte, que nos tenha legado a época colonial essa visão ambivalente da competência governamental e de sua vis publica: de um lado, a explicitação minudente pelas ordenações, códigos, leis e portarias de um Estado que tudo relaciona e estipula; por outro, a de um quase espantalho, que acena com ameaças e penas, as quais não tem condições de, na prática, implementar.
O Estado brasileiro cresce, ou melhor incha, no seu frenesi tributário – que não se peja, inclusive, de taxar pesadamente medicamentos – mas a sua expansão arrecadadora se transmuta em obesidade que não serve aos bons fins do desenvolvimento social.
Ao paroxismo na arrecadação, que vai subindo vegetativamente a cada ano, o contribuinte brasileiro assiste, indefeso e perplexo, aos constantes reclamos das autoridades estatais de que, por exemplo, carecem de mais fundos para a saúde.
Na verdade, a manchete a que aludi acima, não se aplica somente ao meio ambiente, e ao faz-de-conta das fiscalizações. Se a saúde pública é uma atribuição estadual, e se a União, através dos órgãos federais competentes, lhes repassa os fundos orçamentários, se a esta função não se associa a vontade da fiscalização, a consequência inelutável será o incremento da corrupção. Se os fundos são desviados – e aqui são fungíveis tanto os ministérios, quanto as repartições estaduais ou municipais recipientárias – qual a serventia de aumentar o bolo dos tributos ? Ou de julgar que uma rede de televisão pode se substituir à função de Estado de vigiar pelo bom emprego dos tributos, que se tira das costas do povo com tanto ardor ?
Nas campanhas eleitorais, por causa da praga da reeleição, se um candidato trata de expor o escândalo de hospitais públicos mal-equipados e de atendimentos abaixo da crítica, a solução não é a da autoridade que postula a reeleição correr para o tribunal eleitoral para que proíba a exibição de uma propaganda tida como perigosa e comprometedora porque veraz. E, no entanto, esse cenário infelizmente não é incomum.
Toda a desídia federal tem consequências que são pagas pela comunidade.É uma espécie de duplo tributo. Já pagamos – e andamos pelo despropósito dos quarenta por cento de carga tributária – bastante, e ainda devemos suportar a corrupção aliada à negligência de quem não fiscaliza, nem sistemática, nem erraticamente ? E, em que redunda essa infausta associação do crime com a indolência ? Nas crianças subnutridas das escolas a que não se dão meios de dispor de merenda escolar; nos pobres pacientes dos hospitais públicos, que só dispõem da assistência a que fazem jus nas vilas Potionkin das propagandas eleitorais; e na sem-vergonhice do desmatamento das ‘áreas de proteção’, o que só acontece pela quase-certeza da impunidade, dada a inoperância das autoridades ditas competentes.
Tudo isso é lamentável. O é ainda mais pela convicção de que bastaria a vontade da autoridade – federal, estadual e municipal – para que o bom combate ao flagelo dessa tácita aliança entre corrupção e desídia fosse encetado de forma crível e responsável.
Quando o infrator tiver diante de si a provável certeza de que não escapará impune do seu ‘malfeito’, o primeiro verdadeiro passo terá sido dado para que as coisas principiem a terminar mal para os maus.
( Fonte: O Globo )
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