Essas viaturas sóem corre irresponsáveis, em desatinada velocidade,com alguém que não tem nenhum controle sobre os mais elementares cuidados e cautelas a que deve respeitar toda pessoa habilitada a dirigir.
O cenário acima, que se repete incrivelmente nos noticiários televisivos e nas páginas dos jornais, não termina por aí. Amiúde, a foto do sinistro é de carro ou caminhão danificado, sem condições de prosseguir na sua tresloucada trajetória, um chofer trôpego, com os sentidos claramente afetados, que costuma sair ileso do acidente por ele causado.
Mas tampouco pára por aí o registro. No seu rastro e à sua volta, há feridos e mortos, todos atropelados por um irresponsável. Malgrado estar alcoolizado – e quem quer que o veja nesse estado não terá dúvida de que é mais um motorista a dirigir sem qualquer condição de fazê-lo – cambalear e mal articular palavras, como todos os demais autores de tais situações em um ponto específico ele não trepidará ‘em reclamar o seu direito de não submeter-se ao bafômetro’.
Em qualquer outro país em que a vida de seus habitantes merecesse mais respeito, teriam sido tomadas providências para pôr um fecho a esse triste cenário, que é um produto de condenável negligência e de uma, digamos, hipocrisia jurídica.
Por quê condenável negligência ? Os acidentes com morte de transeuntes e trabalhadores se têm repetido com mais do que embaraçosa frequência. Será acidente a ocorrência causada pelo toldamento dos sentidos e a consequente falta de percepção da responsabilidade provocada pela ingestão da bebida em doses muito acima dos limites legais ?
E, não obstante, os motoristas, ainda que embriagados ou afetados pelo alcool, não parecem perder a consciência de sua responsabilidade, no que tange à auto-proteção.Sem exceção, quase todos se recusam a passar pelo bafômetro, e o fazem decerto pela plena consciência do resultado de tal exame. Sem serem juristas, sabem que é um direito constitucional seu negar-se a testemunhar contra si próprio.
Mas onde está a alegada negligência ? Ela é mais do que visível, ela é patente na lista das vítimas desses bêbedos ao volante. Na sua grande maioria, é gente humilde, trabalhadores (garis, jardineiros) ou quem tem que esperar, na calçada, o ônibus ou a vã. O ex-coordenador da lei seca no Rio de Janeiro atropelou (e matou) populares, e depois retardou o exame de sangue, como se a evidência do delito a pudesse expungi-la com a decorrência do prazo (não param por aí as estranhezas neste caso. Agora um tribunal de segunda instância lhe revoga a prisão – de que estava foragido). Em São Paulo, outro embriagado matou dois jardineiros e um outro luta pela vida. Na Paraíba, um ciclista foi atropelado por automóvel, cujo motorista cuidou de escapar, ao invés de prestar-lhe assistência.
Os exemplos são tantos a ponto de configurarem o que o francês chama de ‘embarras du choix’. Que escolha embaraçante esta, que trata seres humanos indefesos, que estão em espaços supostamente protegidos, mas não fora do alcance desses bestializados indivíduos, que mal falam quando detidos, embora as névoas na sua mente não os impedem de valer-se de suas garantias constitucionais.
Hipocrísia jurídica.
Permitam, senhores juristas, a liberdade que toma um bacharel em Direito pela então Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Não sei se esta suposta prerrogativa constitucional aplicável aos casos em tela – e de que se valeu, é bom lembrar, o Senador por Minas Gerais, Aécio Neves, quando flagrado em blitz policial no Rio de Janeiro, por ser igualmente portador de licença para dirigir, com prazo já vencido – decorre de algum voto do Supremo Tribunal Federal, sempre zeloso na extrema defesa das garantias individuais. Por vezes, é verdade, esse radicalismo na interpretação – como a de permitir que indivíduos condenados só possam ser presos por decurso de sentença[1] - tem suscitado não pouca perplexidade, e sobretudo por ensejar aos suspeitos com bons advogados (leia-se suspeitos com recursos) valer-se de tal condição para postergar a aplicação da pena.
Mas evitemos as digressões. A utilização do bafômetro – que é aplicado sem mais cerimônias em outros países civilizados – visa a determinar o grau de ingestão alcoólica pelo indivíduo acusado de um delito (ou detido em sua simples blitz preventiva). Já implica em uma certa flexibilidade interpretar um exame que deveria ser de rotina – afinal quem não deve, não teme – como se fora forçar um indivíduo a depor contra si próprio. Será que determinar as condições físicas e mentais de alguém, e de aferir o seu quociente alcoólico no sangue é infrigência de norma constitucional?Vamos alvitrar, somente para continuar o raciocínio que, forçando um tanto a barra, possa interpretar-se como cobrar do suspeito uma prestação pela qual ele venha a demonstrar ter causado o acidente no pleno exercício de suas faculdades mentais. Em outras palavras, o bafômetro, para os motoristas, pode ser um fator atenuante, eis que corrobora a tese do suspeito de que não está alcoolizado. Para tanto, é lógico, semelha indispensável que ele se submeta a tal formalidade.
Sem embargo, estamos nos esquecendo de que há outras cláusulas constitucionais em jogo. Contando com a compreensão dos senhores magistrados – e dos senhores legisladores – a cláusula a que me reporto é a de um direito que sobreleva a essas questiúnculas de que astutamente se sabem valer os motoristas incriminados.
Será que o respeito à vida e à integridade do transeunte – atropelado, trucidado, esmagado, morto – por um motorista embriagado não configura acaso uma cláusula constitucional, por mais humildes que sejam as pessoas vitimadas?
Afinal, o brasileiro, qual seja a sua condição, é ou não é igual perante a lei ?
Francamente, meus senhores, é mais do que tempo para corrigir esta norma, e condicioná-la a um mínimo de respeito ao cidadão.
Senão, pode-se ter a molesta e inadmissível impressão que tudo isso continua ocorrendo, com a acintosa permanência da impunidade dos bêbados ao volante,por uma simples condição de posição social e de recursos.
Decerto, é uma falsa noção de minha parte. Só pediria que me confirmassem logo nesse equívoco, e providencie sem demora a reinstituição no caso de uma justiça digna deste nome, que respeite as vítimas ao invés de proteger os suspeitos, inclusive os detidos em flagrante delito.
(Fontes: Folha de S. Paulo, Rede Globo)
[1] para não cansar o leitor, tal significa ou a sentença passar em julgado nas instâncias inferiores, ou esperar a longa travessia através das três compulsórias instâncias (o juiz singular, o tribunal de alçada, o Superior Tribunal de Justiça e, em casos extremos, o próprio Supremo) para que o culpado venha a cumprir a pena (V. exemplo de Pimenta Bueno).
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