Desde agosto, com a queda de Trípoli, não mais foram vistas imagens do Coronel Muammar Kaddafi. Nos meses seguintes, até a fatídica jornada de quinta-feira, dia vinte de outubro, a voz do ditador ainda foi ouvida, em mensagens contra os ratos traidores, emanadas de comandante acuado e desesperado, cuja conexão com a realidade aparecia sempre mais esgarçada e patética.
Não é o propósito deste blog, no entanto, versar esses últimos dias, embora a matéria seja de interesse para artigo posterior. Ao cair o líder da Jamahiriya, a opinião pública árabe se perguntou sobre dois outros déspotas árabes que se acham em tenaz luta para manter-se no poder.
Com efeito, logo se estabelecera como natural ligação entre o coronel Kaddafi e dois congêneres seus, Bashar al-Assad e Ali Abdullah Saleh, presidentes, respectivamente, de Síria e Iemen. Além de ditadores, os três exibiam longo período de mando. Kaddafi, quando foi abatido pelos rebeldes de Misurata, era o decano dos chefes de governo (com 42 anos). Da dupla restante, Saleh, o eterno presidente já passa das três décadas, e Bashar, é o junior, com onze anos.
Tais laços, sem embargo, se reforçam pelas características dos regimes respectivos. Se as instituições líbicas não íam muito além de um disfarce do reino tirânico do coronel, tanto na Síria quanto no Iemen o absolutismo e o personalismo da dominação constituem traços inequívocos de governos que não trepidam em metralhar inermes manifestantes.
Esse caráter sanguinário os distingue de outros dois hierarcas, ambos constrangidos a renunciar a uma alentada presidência. O primeiro, Ben Ali, da Tunísia, tratou de fugir para a Arábia Saudita, com todo o ouro a que pensou ter direito; Hosni Mubarak, o presidente de três décadas, foi deposto ao cabo de dezoito dias pela revolução da praça Tahrir, e hoje inerme assiste ao próprio juízo, sob as vistas do marechal-de-campo Mohamed Hussein Tantawi, antes escarnecido como o poodle do mesmo Mubarak (era o ministro do exército).
Não creio seja o caso de engrossar essa companhia com o rei do Bahrein, Hamad bin Isa al-Khalifa, a quem ora sustenta força expedicionária mandada pelo sultão Abdullah, da Arábia Saudita. Além de lhe faltarem os cruéis caprichos do senhor da Líbia, suas maldades mais se inserem na dos régulos dos pequenos estados itálicos de que nos fala a Cartuxa de Parma de Stendhal.
A associação temática com o cambaleante Kaddafi o presidente Bashar al-Assad já o demonstrara aborrecer deveras. Prova bastante disto é o espancamento por seus esbirros do cartunista Ali Ferzat, pelo crime de colocá-lo no mesmo barco com o coronel líbico.
A sumária execução de Kaddafi foi notícia que os fâmulos de Assad (e os menos numerosos de Saleh) terão hesitado sobremaneira em inteirar o respectivo amo (não é de esquecer o exemplo do tratamento [1]Saddam Hussein aos portadores de novas de mau agouro). E o motivo é o mesmo das covardes sevícias sobre Ferzat: a nação árabe os considera pássaros da mesma plumagem e, portanto, o que ocorreu a Kaddafi torna tal destino mais próximo do líder da Síria.
A situação tanto no Iemen, quanto na Síria continua a apodrecer. A truculência de al-Assad e seus partidários já ultrapassou as três mil mortes de manifestantes. Dada a precariedade de tais cômputos, feitos num território de que, segundo o provado modelo iraniano, se proibe o ingresso da mídia ocidental, há de intuir-se que as masmorras e os logradouros do regime alauíta teriam muito a agregar a essa esquálida numeração.
Igualmente no Iemen, regido por este joão-teimoso que ressurge de longa internação no refúgio saudita, se exacerbam violentos os métodos suasórios do ditador Ali Saleh contra os protestos dos sit-in e das manifestações pacíficas. Além das solitárias vítimas de snipers (atiradores isolados), houve metralhamento de marcha de protesto, com pelo menos cinco mortos.
O isolamento internacional da Síria – e o caso paralelo do pequeno Iêmen – continua a agravar-se, malgrado a mão amiga que lhe estendem os regimes autoritários da China e Rússia.
Nesse campo, o Brasil persiste numa posição que pode causar estranhável assombro. Depois de aferrar-se ao moribundo regime do coronel Kaddafi por demasiado tempo, a Presidenta exprobou o povo líbico por comemorar o passamento de seu amado líder.
Ignoro se dentro de nossa ferrenha e abrangente campanha pelo assento permanente no Conselho de Segurança temos missão diplomática em Sana. Sem embargo, seria talvez o caso de a instância competente atrever-se a submeter à enérgica Dilma Rousseff a possibilidade de que manifestemos, quem sabe através da retirada do embaixador, o nosso desagrado com o exercício de tanta violência pelo preclaro Presidente Bashar al-Assad.
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