Até que ponto um governo pode se sentir confortável com o regime de cancela fechada em matéria de direitos humanos ?
Através dos tempos, a soberania nacional tem sido o principal álibi das ditaduras. Se é muito difícil determinar-se, em termos irrevocáveis, a existência objetiva de um regime ditatorial, pelos muitos subterfúgios institucionais a que recorre tal gênero de estado, nada mais fácil para indicar as ovelhas negras desse rebanho do que a falta de imprensa livre, de opinião pública digna deste nome e de judiciário independente.Se os regimes totalitários tipo Mianmar são a exceção que prova a regra, há muitos outros casos de ditaduras, que se vestem com roupagens da democracia. O caráter postiço de tais vestimentas pode variar em termos de índice de credibilidade. Dessarte, pelos sinais exteriores, a Federação Russa pode pleitear o rótulo de democracia ? Formalmente sim, eis que todos os poderes e os supostos direitos, estão consignados. No entanto, abundam os indícios de que não é assim, e a Rússia do gospodin[1] Putin não é exatamente uma democracia.
Há outro critério para distinguir alhos de bugalhos, embora este nem sempre dê bons resultados.
Reporto-me às votações nas Nações Unidas e, em particular, ao órgão diretivo do sistema, o Conselho de Segurança. Por muitos anos já, o Brasil vem cosendo, com beneditina paciência, um sistema de alianças ad hoc, fundado na pretensão de integrar, na qualidade de membro permanente, um Conselho aumentado, de forma a que a ONU venha a corresponder às novas realidades do mundo, que não são obviamente as de 1945, quando a Carta das Nações foi assinada, e o Brasil esteve no limiar de aceder a esse seleto número.
Das cinco grandes potências do final do conflito – Estados Unidos, União Soviética, China Nacionalista, Grã-Bretanha e França, as duas últimas, embora conservem o assento, deixaram de sê-lo, a China se tornou a República Popular e caminha para contestar a primazia da atual superpotência, enquanto a Federação Russa, encolhida, mas sempre nuclear, é a sucessora da URSS.
Batendo à porta deste seleto diretório mundial, quatro países – dois perdedores da última conflagração – Alemanha e Japão -, o pretendente de 1945 (Brasil) e a Índia, que caminha para ser o país mais populoso.
Junto com a África do Sul – que é o júnior do grupo de emergentes cognominado pelo acrônimo Brics – por um acaso tais nações integram o Conselho de Segurança, a título de membros não-permanentes, com mandato de dois anos.
Em recente votação, o sistema imperialista do século dezenove voltou a ser empregado. Como se sabe, o Conselho de Segurança das Nações Unidas é o órgão executivo daquele vasto colegiado, e as suas Resoluções teriam caráter compulsório. Com efeito, o veto no sistema é um resquício de privilégio de grande potência, do tempo da diplomacia das canhoneiras. Se a dita grande potência discorda, basta o seu solitário voto para emperrar toda uma maquinária que é desejada por vasta maioria de países. Pode-se acoimar o sistema de autoritário, mas não de irrealista, por impedir a relativa anomia que prevalecia na anterior Liga das Nações.
Todas essas contradições voltam a manifestar-se no duplo veto dado por Rússia e China a projeto de resolução de condenação do regime de Bashar al-Assad na Síria, por conta dos arbítrios, tropelias e geral desrespeito aos direitos humanos prevalentes naquele país árabe.
A resolução preconizada pelo Ocidente – na prática natimorta pela oposição desses dois regimes autoritários – mereceu igualmente a abstenção dos demais Brics (Brasil, Índia e União Sul-Africana).
Causa espécie que países democráticos se dissociem de medidas internacionais que visam auxiliar forças democráticas e populares que lutam no país contra a opressão sistemática de suas manifestações, assim como sofrem ações intimidatórias dentro da vasta gama aberta aos regimes discricionários.
Por considerações nunca demasiado esclarecidas, o Itamaraty timbrara em continuar apoiando na Líbia um regime discreditado, farsesco e detestado pela vasta maioria da população.
Em um país que talvez seja o único a ter na respectiva Constituição diretivas assaz evidentes no que respeita a direitos humanos, tende a criar certa perplexidade que o voto da representante brasileira naquele Conselho volte a associar-se com uma companhia de marcado viés ideológico autoritário.
Censurada por países islâmicos como a Turquia, provoca estranhável assombro que a tirania dos al-Assad possa valer-se não só do veto de Federação Russa e da RPC, mas também da abstenção de democracias, como a dos três Brics, que disfarçam sob a sombra de pragmática conivência o isolamento de Beijing e Moscou, e lhes minimizam os danos em matéria de imagem.
( Fonte: Folha de S. Paulo )
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