No dia em que Trípoli caiu – domingo, 21 de agosto – Muammar Kaddafi teve de iniciar a sua fuga. Permanecer na capital se tornara impossível, com a tomada de Bab al-Aziziya, o fortificado centro residencial aonde se homiziara. Os vastos salões daquele singular complexo refletiam os hábitos e o nível sócio-intelectual do coronel e de sua família. Ali, a riqueza e a opulência próprias de seu círculo não podiam comparar-se aos palácios de antigas dinastias, mas sim constituíam o espelho de sua inerente vulgaridade, descambando mesmo para a cafonice,considerando o gosto ocidental dos mais sofisticados.
Como que traumatizado pelo infortúnio, Kaddafi daria poucas ordens. Fugir para Sirte, o seu berço natal, foi decisão do filho Muatassim. No entendimento deste último, por ser considerada reduto importante das forças legalistas, e por isso bombardeada com frequência pela OTAN, Sirte seria avaliada pelo CNT como um muito pouco provável esconderijo do ditador.
A Estada em Sirte.
O pequeno comboio do líder da Jamahiriya chegou em Sirte passando pelos bastiões legalistas de Tarhuma e Bani Walid. Por temer que o respectivo telefone de satélite já houvesse sido localizado pela OTAN, Muatassim adotou a que me parece sensata decisão de viajar em outro comboio separado. Acompanharam Kaddafi cerca de dez pessoas, entre assessores e guardas.
Uma vez chegados a Sirte, o comando do destacamento de defesa ficou a cargo do filho Muatassim. Lá estava congregado o que se poderia chamar o núcleo duro da rede legalista. Pela dedicação das forças, nível de treinamento bélico, assim como armamento e quantidade de munição reunidas, ficam mais inteligíveis os cerca de dois meses de resistência.
Assinale-se que, a princípio, os ataques dos rebeldes foram rechaçados com facilidade. Não estavam os combatentes do CNT, na verdade, preparados para o poder de fogo do reduto legalista. Pensando que se renderiam com a presteza de outras cidades, os agrupamentos rebeldes subestimaram o adversário. Tardou para que se dessem conta da necessidade de barragem de fogo sustentada para desbaratar o núcleo, que resistia com a firmeza daqueles que não mais dispõem de opções de retirada. Após a queda de Bani Walid, o campo dos partidários de Kaddafi se estreitou e com a diminuição progressiva dos recursos a sorte de Sirte passou a ser uma questão de dias.
O dia-a-dia de Kaddafi.
Segundo o chefe da Guarda do Povo, Mansour Dhao Ibrahim, que seria primo de Kaddafi, o coronel não participou da luta (‘não deu sequer um tiro’), e vivia a mor parte do tempo ‘fora do mundo’. Não tinha computador – mesmo se o tivesse, em geral não havia eletricidade - e seus contatos externos se cingiam a pronunciamentos através de estação de tevê síria, que se transformaria em espécie de canal oficial seu.
Consoante o testemunho de Dhao, Kaddafi gostava de apresentar a revolução como guerra religiosa entre muçulmanos devotos e os aliados ocidentais dos rebeldes. Assim, passava a maior parte do tempo lendo o Corão. Tanto o coronel, como seus filhos se recusaram a considerar a hipótese da fuga para o exterior, ou a renúncia ao poder. Sem embargo, de acordo com Dhao, o coronel parecia mais aberto à hipótese da renúncia ao mando, do que seus filhos.
O coronel e seu círculo íntimo viviam sob o tiroteiro constante mas sem direção previsível (random) da artilharia rebelde, situada fora da cidade. Certo dia uma das casas em que se abrigara o coronel foi atingida, não se sabe se por morteiro, ou por um míssil. Três dos guardas ficaram feridos, bem como o cozinheiro (chef), o que forçou todos a começarem a cozer a própria comida.
Por vezes, a atitude do líder da Jamahiriya denotava certa alienação. Ele perguntava então ‘por que não há eletricidade ?’ e ‘por que não há água corrente aqui?’
A Quinzena Derradeira.
Por volta de cinco de outubro, após a tomada do centro da cidade pelos rebeldes, o coronel e seus filhos foram surpreendidos quando tentavam transferir-se de uma casa para outra na zona residencial denominada Distrito nr. 2. Eles ficaram cercados por centenas de rebeldes, que passaram a alvejar a área de forma indiscriminada com metralhadoras pesadas, mísseis e morteiros.
Consoante reconheceu Dhao, não havia outra saída: ‘a única decisão era viver ou morrer’.
O coronel Kaddafi decidiu, então, que era hora de abandonar o sítio. De acordo com seu plano, se fugiria para uma de suas casas nas vizinhanças, aonde ele tinha nascido.
A última fuga.
Na quinta-feira, dia vinte de outubro, um comboio de mais de quarenta viaturas deveria partir ao redor das três horas da manhã.
No entanto, por motivos não declinados, houve considerável atraso. É de presumir-se que as articulações dos grupos legalistas, já claramente inferiorizados, não mais poderiam desenvolver-se de modo satisfatório. Por isso, a partida só ocorreu às oito da manhã.
Kaddafi embarcou em jipão Toyota Land Cruiser, acompanhado pelo chefe da segurança, um parente seu, o motorista e Dhao.
O retardo na partida seria determinante para a rápida detecção de parte dos aviões da OTAN e dos destacamentos rebeldes. Cerca de meia hora no avanço do comboio, um caça-bombardeio francês lançou míssil que explodiu bastante próximo do Toyota. Pelo impacto, os air-bags foram acionados. Mesmo ferido por estilhaços (shrapnel), Dhao prosseguiu caminhando junto com Kaddafi e outras pessoas.
Foram primeiro para uma fazenda, depois voltaram à estrada principal. Na sua margem, havia dois grandes canos de drenagem. Segundo Dhao, o tiroteio era constante. De novo, o chefe da guarda foi atingido por estilhaço, caindo inconsciente.
Ele só recobraria os sentidos no hospital.
O Epílogo.
No descampado, sob a artilharia rebelde, o único refúgio possível para Muammar Kaddafi terá sido meter-se no cano de drenagem. Em plena luz do dia, abandonado o jipão e dispersos ou abatidos os seus acompanhantes, o desespero terá levado o coronel a esconder-se no largo cano.
Não obstante, a fuga dos passageiros do Toyota tinha sido vista pelo destacamento rebelde, que os alvejou repetidas vezes. Tendia, por conseguinte, para zero a possibilidade de alguém porventura acoitado nos avantajados canos escapar de eventual descoberta e ulterior aprisionamento ou fuzilamento.
Foi o que ocorreu com o fugitivo Muammar Kaddafi. Os combatentes do CNT cercaram a saída da tubulação de drenagem. Provavelmente circundaram a improvisada toca sem saber de quem se tratava. Sabiam ser um inimigo, algum simpatizante ou combatente kadafista.
Tudo leva a crer, todavia, que ignoravam a qualidade da presa que lhes caíra na rede até o instante em que o coronel, forçado pelas circunstâncias e provavelmente ferido de raspão por disparo de rebelde, se dispõe a deixar o abrigo improvisado.
A partir desse momento, as coisas se precipitam para o deposto líder da defunta Jamahiriya. A rebelião de Benghazi se estendeu pelo país como rastilho de pólvora. Decerto os tempos estavam maduros para um movimento contra o errático, imprevisível, amiúde cruel e violento tirano.
Ninguém se sustenta por mais de quarenta anos sob o ódio geral de uma população. Como a guerra civil o demonstraria, Kaddafi tinha partidários e gozava de apoio em áreas determinadas, sobretudo no oeste e na região de sua tribu e aliadas.
Entretanto, a duração do conflito, os bombardeios da OTAN, o desgaste decorrente, e a evolução das hostilidades certamente não foram de molde a reforçar as posições do campo legalista.
Na composição das forças rebeldes Kaddafi não poderia encontrar elementos que lhe fossem mais hostis do que os naturais de Misurata, cidade que sofrera duramente na primeira fase da guerra sob o tacão do exército legalista.
Pela cercania topográfica, coube a destacamento desta cidade interceptar e deter Muammar Kaddafi.
Os vídeos disponíveis mostram um Kaddafi preocupado, com mostras de golpes no rosto, mas de pé. Nesse momento, tratam-no com dureza, o chamam de cão (pesada ofensa em país muçulmano), o esbofeteiam, mas não apresenta no corpo nenhum ferimento que o coloque em perigo de vida.
Se a sua existência física está ameaçada tal se deve unicamente ao ambiente que o cerca, e à disposição de seus captores.
Há um intervalo neste vídeo. Quando retoma a imagem de Muammar Kaddafi, se nos depara um cadáver, com ferimentos na cabeça e na barriga.
As explicações intervenientes – morreu no caminho do hospital – não convencem. A própria autópsia, feita a mando do CNT, determinou como causa mortis um tiro na cabeça.
Semelha inegável a execução. Resta estabelecer a mando de quem ela se realizou.
(Fonte: International Herald Tribune )