quarta-feira, 30 de junho de 2021

Hong Kong e a ditadura chinesa

     O problema não vem de hoje, mas se agravou bastante com a tomada do poder por Xi Jinping,  o novo líder chinês. Como já referi neste blog, passei em missão por essa antiga colônia britânica,  que no final do século passado foi restituída à República Popular da China.

      O que fazia o encanto de Hong Kong eram as suas relações com o Ocidente e a liberdade de opinião que florescia na sua imprensa e em boa parte de sua população. Espremida entre mar e montanha, essa antiga colônia do Império teve a sua "independência do jugo colonial" afinal concedida  por Sua Majestade, em que os negociadores ingleses colocaram como condição a Beijing a manutenção da liberdade de pensamento que ali se enraizara.

       A História é uma velha senhora que já deparou com muitos absurdos. No caso dessa colônia  as negociações entre Londres e Beijing se centraram na preocupação britânica quanto à liberdade política de que desfrutava a população. Para tanto, os negociadores de Sua Majestade buscaram arrancar concessões em termos de parâmetros de liberdade ocidental da parte chinesa e para tanto obtiveram o acordo formal  em que o respeito a padrões ocidentais de liberdade política fosse assegurada à respectiva população.

       Contraditória ou não, a concessão foi negociada  e transformada em letra do tratado que dispunha do retorno daquela terra rochosa à autoridade chinesa.  Em um jogo difícil  de ser considerado passível de ser implementado, a irrequieta juventude de Hong Kong engoliu em seco e tentou acreditar  em uma transformação que ia ao encontro do bom senso e da milenar experiência histórica. 

        Em uma dessas contradições de que a História pode ser mestra, um dos ingredientes do sucesso de Hong Kong como entreposto comercial está na adaptabilidade da atmosfera de uma  colônia  aos encantos da liberdade e às condições de  sociedade que frui das benesses da liberdade política. Esse encanto de uma libertária colônia, em meio às contradições do cenário, constituía um traço na aparência absurdo, mas que, em verdade mostra a força da democracia.  A liberdade é um status na aparência contraditório, porque ela convive com a imaginação e a primazia da inteligência.  Essa perigosa plantinha faz poucas exigências, mas não costuma conviver  com a repressão e a burrice que crescem afrontosamente nos confinamentos da intolerância, que constituem  tristes sequelas da pouco respirável atmosfera  dos regimes totalitários, nos quais a liberdade é temida como expressão que é do potencial perigo que representa em termos de imaginação, abertura e criatividade, que são anátema para os regimes ditos ditatoriais, que preferem  a conformidade das ordens unidas.

        Como noticiam os jornais, a repressão em Hong Kong é o triste  resultado de uma  consciência que lamentavelmente se encaminha para os torpes padrões da  tolerância zero do atual líder máximo da máquina chinesa de governo. 

         A ironia histórica é inegável. Nunca a relatividade das condições foi tão realçada como no caso presente. Por uma conjunção desafortunada, ironicamente teria sido preferível  que a buliçosa Hong Kong houvesse mantido a própria condição de colônia de Sua Majestade por mais algum tempo, o que representaria um ganho em termos de condições de vida política, vantagem essa que ora inexiste sob a opressão de um novo tirano, que levanta o velho cajado na perseguição que nada inova em termos de uma existência sem ilusões, que por temer o novo condena os infelizes a uma existência burra e sem os desafios da liberdade,  cerceada que é pela repressão, que, na verdade, constitui apenas a expressão de outra realidade, a de um ulterior regime que cultua a violência institucional  e a estólida burrice, essa mesma que pensa sufocar todo movimento que busque dar sentido à vida e às pulsões que cada povo leva consigo. A repressão, na verdade, no caso presente, é um avantesma dos temores reprimidos dos tiranos da vez.

          Em realidade, a quota de sofrimento obedece às regras cruéis que, por vezes, presidem à existência das pessoas. Nessa estória - ou paradoxo - de Hong Kong, a inventiva de tantos fatores altera as perspectivas de sua população, e a suposta concessão da liberdade  torna-se, na   verdade, uma armadilha cruel, sobretudo para a população autóctone.  

           Já o próprio poeta Virgilio - Timeo Danaos et dona ferentes -  nos recorda que  presentes podem ser perigosos...


(Fonte: Folha de S. Paulo)

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